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Alguns cantos de trabalho

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Não é só Milton Nascimento. As canções de trabalho povoam a música brasileira, de Clementina de Jesus Chico César, de Ataulfo Alves aos rappers paulistas. Seguem abaixo um guia e uma compilação de “work songs” à brasileira.

1. Clementina de Jesus, “Cinco Cantos de Trabalho” (1976) – o condensado de Clementina parte de “Os Escravos de Jó”, de Milton e Fernando Brant, passa pelo “Ensaboa Mulata” de Cartola e deságua nos cantos anônimos de trabalho: “Alegria do Carreiro”, “Peixeira Catita”, “Atividade no Abano”.

2.Milton Nascimento, “O Homem da Sucursal” (1970) – “Os Escravos de Jó” surgiu como canto de escravos em 1973, em dueto de Milton com Clementina. Mas a canção já existia, e na primeira forma tinha sabor urbano-jornalístico, no contexto de um documentário sobre o jogador de futebol Tostão. Em 1977, ganharia uma terceira letra de Fernando Brant, para a voz de Elis Regina, sob o título “Caxangá”. Nas três versões, o espírito laborioso está preservado.

3. Astrud Gilberto, “Zigy Zigy Za” (1972) – moça baiana da bossa nova, já radicada nos Estados Unidos, Astrud usa essa estranha grafia de título, mas não se trata de nada mais que a cantiga infantil dos “escravos de jó” que “jogavam caxangá” e faziam “zig-zig-zá”.

4. Jorge Ben, “Zumbi” (1974) – Na conexão África-Brasil, Jorge canta as dores da escravidão e da lida na lavoura: “Aqui onde estão os homens/ de um lado cana de açúcar/ do outro lado o cafezal/ ao centro senhores sentados/ vendo a colheita do algodão branco/ sendo colhidos por mãos negras”.

5. Luiz Gonzaga, “Algodão” (1959) – o forró é o palco para um canto rural submisso do rei do baião: “Quando chega o tempo rico da colheira/ trabalhador vendo a fortuna se deleita/ chama a famia e sai pelo roçado vai/ cantando alegre, ai, ai, ai, ai, ai/ sertanejo do norte/ vamos plantar algodão/ ouro branco que faz nosso povo feliz/ que tanto enriquece o país/ o progresso do nosso sertão”.

6. Jorge Ben, “África Brasil (Zumbi)” (1976) – na versão heavy-funk-rock do mesmo “Zumbi” de dois anos antes,  Jorge acrescenta alguns versos e reivindica um futuro próximo, simultâneo à critica de um cruel presente aparentemente perpétuo: “Eu quero ver o que vai acontececer/ eu quero ver o que vai acontecer/ eu quero ver o que vai acontecer quando Zumbi chegar”.

7. Dorival Caymmi, “Retirantes” (1975) – A abertura da telenovela global Escrava Isaura pintava retrato de tintas bem mais fortes do que o título fazia supor: “Vida de negro é difícil/ é difícil como o quê/ (…) eu quero morrer de açoite/ se tu, negra, me deixar”.

8. Trio de Ouro, “Pescaria (Canoeiro)” (1944) – um dos muitos cantos de pescadores de Caymmi, em interpretação do trio de Dalva de Oliveira Herivelto Martins – e Nilo Chagas, vocalista negro de que a história se esqueceu com maior facilidade que aos outros dois.

9. Elza Soares, “Viagem de Jangada” (1975) – canto praiano de pescador, em leitura de samba e morro cariocas.

10. Elis Regina, “Arrastão” (1965) – inauguradora da era dos festivais, o tema furioso de Edu Lobo Vinicius de Moraes cravava uma versão mais ácida dos cantos pesqueiros de Caymmi.

11. Marku Ribas, “Canção do Sal” (1979) – a “work song” inaugural de Milton Nascimento, aqui em versão suingada, samba-roqueira, mineira.

12. João Bosco, “Quilombo” (1986) – segunda versão, mais afro-samba, do canto escravo rebelde lançado por João em seu LP inaugural, de 1973.

13. Martinho da Vila, “Batuque na Cozinha” (1972) – obra-prima de João da Baiana, um dos fundadores do samba, faz um retrato da tensão entre casa-grande & senzala – e, subjacente a ele, entre trabalho & prazer.

14. Clementina de Jesus, “Canto II” (1982) – peça do tocante álbum O Canto dos Escravos, dividido por Clementina com Doca e o sambista paulista Geraldo Filme.

15. Doca, “Canto X” (1982) – o canto potente de tia Doca, noutra (linda) faixa d’O Canto dos Escravos.

16. MPB 4 Quarteto em Cy, “O Cio da Terra” (1978) – versão a oito vozes do encontro musical de Milton e Chico Buarque, em clave de canto rural católico, de “debulhar o trigo/ recolher cada bago do trigo/ forjar no trigo o milagre do pão/ e se fartar de pão”. 

17. Ruy Maurity, “A Senha do Lavrador” (1973) – os rituais do lavrador, com pé de arruda, chuva miúda, mutirão e trem danado pra Catende.

18. Wando, “O Ferroviário” (1973) – Um Wando pré-“brega”, tenso e denso, retratando as penas diárias do ferroviário.

19. Nara Leão, “Maria Moita” (1964) – à frente do tempo sob vários aspectos, o afro-samba de Vinicius e Carlos Lyra mistura racismo & miscigenação racial, machismo & feminismo, escravidão & prostituição, casa-grande & senzala, riqueza & pobreza, resignação & rebelião: “Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois/ por isso é que a mulher trabalha sempre pelos dois”.

20. Milton Nascimento, “Maria, Maria” (1978) – do Clube da Esquina 2, mas imortalizada a seguir na voz de Elis, o labor feminino que “é o som, é a cor, é o suor”.

21. Fafá de Belém, “Maria Solidária” (1978) – trabalho & festa & prazer & corpo & solidariedade, unificados na voz paraense quente de Fafá.

22. Francis Dalva, “Galope” (1982) – canto de trabalho paraense, das confluências rurais-caribenhas quentes e úmidas da Ilha do Marajó.

23. Pinduca, “Dona Maria” (1973) – trabalho feminino paraense braçal, suingado, jazzístico, para pegar a geral pelo estômago.

24. Fafá de Belém, “Estrela Radiante” (1979) – o tema baiano de Walter Queiroz começa com jeitão de canto escravo e se revoluciona em celebração, festa, carnaval.

25. Simone, “Povo da Raça Brasil” (1979) – “ponha a mão na mágoa, ponha a mão no povo/ ponha a mão na massa pra fazer o pão”, canta Simone em mais uma “work song” do ciclo de “ir onde o povo (negro) está” de Milton e Brant.

26. Monsueto Menezes, “Lamento da Lavadeira/ Na Casa de Antônio Job” (1962) – canto de lavadeira do autor do clássico samba “Mora na Filosofia” (“pra que rimar amor e dor?”).

27. Cartola Creusa, “Ensaboa Mulata” (1976) – o herói do samba ensina submissão à filha, que canta com dor de fundo de peito.

28. Luiz Melodia, “Juventude Transviada” (1976) – mais um canto urbano, pós-tropicalista, de lavadeira: “Lava roupa todo dia, que agonia/ na quebrada da soleira que chovia”.

29. Marlene, “Lata d’Água” (1952) – sambão de trabalho de outra Maria Moita: “Lata d’Água na cabeça, lá vai Maria/ lá vai Maria/ sobe o morro e não se cansa/ pela mão leva a criança, lá vai Maria”.

30. Nana Caymmi, “Acaçá” (2013) – canto de pregoeiro de melancolia absoluta, de pai Dorival para filha Nana, e vice-versa.

31. Gal Costa, “A Preta do Acarajé” (1979) – enquanto os homens de Caymmi saem para pescar, suas mulheres mercam delícias culinárias nas ruas de Salvador.

32. Trio Irakitan, “A Velha das Ervas Bentas” (1956) – os cantos de pregoeiro vêm de longe na música brasileira – artistas como o Trio Irakitan e Gilvan Chaves dedicavam discos inteiros ao tema.

33. Gilvan Chaves, “Pregões de Pernambuco” (1956) – a criatividade e os dizeres inusitados dos pregoeiros nordestinos.

34. Inezita Barroso, “O Batateiro” (1958) – o canto estranho do pregoeiro napolitano pelas ruas antigas de São Paulo. E as saudades de Inezita.

35. Ruy Maurity, “A Xepa” (1977) – os pregoeiros modernos, urbanos, alegres: os feirantes.

36. Jovelina Pérola Negra, “Feira de São Cristóvão” (1987) – Jovelina, pregoeira moderna, urbana, feirante, sambista.

37. MPB 4, “Linha de Montagem” (1980) – composição de Chico Buarque, o ABC paulista, o operariado, as greves…

38. Ruy (MPB 4), “O Jumento” (1977) – na capital ou no interior, a coisificação do homem transmutado em jumento, de acordo com a fábula infantil marxista buarquiana de Os Saltimbancos.

39. Luiz Gonzaga, “O Jumento É Nosso Irmão” (1968) – do sertão pernambucano que também nos deu Luiz Inácio Lula da Silva, o truque gonzaguiano de confundir bicho & gente, gente & bicho.

40. Dominguinhos, “O Cortador de Cana” (1980) – a travessia campo-cidade e a profunda melancolia do sanfoneiro.

41. Ataulfo Alves, “Bonde de São Januário” (1959) – “Quem trabalha é que tem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ o bonde São Januário leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”, dizia o samba em parceria com Wilson Baptisa, lançado originalmente em 1940, no contexto do getulismo. As Pastoras de Ataulfo brilham fulgurantemente no contracanto.

42. Joyce, “O Trem Atrasou” (1976) – o medo do desemprego e o samba-explicação, tintim por tintim: “Patrão, o trem atrasou/ por isso estou chegando agora/ trago aqui o memorando da Central/ o trem atrasou meia hora/ o senhor não tem razão pra me mandar embora”.

43. Luiz Wanderley, “Trabalhadores do Brasil” (1959) – canção de protesto e desemprego – e de saudades de Getúlio Vargas.

44. Léo Canhoto & Robertinho, “O Presidente e o Lavrador” (1975) – canto caipira de trabalho e mais um presidente na ribalta, desta vez o ditador Ernesto Geisel.

45. Dom & Ravel, “Obrigado ao Homem do Campo” (1979) – aliança trabalhista nas gargantas de dupla demonizada como apoiadora da ditadura.

46. Tom Zé, “Profissão Ladrão” (1968) – no avesso do avesso do avesso, Tom Zé pergunta: entre tantas e tantas e tantas profissões, por que não essa?

47. Luiz Wanderley, “Trabalha Paulista” (1961) – depois de “Baiano Burro Nasce Morto” (1959), o alagoano tenta uma desforra bem-humorada contra alguns dos maiores discriminadores (e instrumentalizadores) de nordestinos.

48. Gordurinha, “Vendedor de Caranguejo” (1960) – canto de catador de caranguejo e muita dor, na voz do autor de “Baiano Burro Nasce Morto”.

49. Os Incríveis, “Vendedor de Bananas  (1969) – “work song” urbana de Jorge Ben, pelos intérpretes do famigerado “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”: “Ninguém diz pra mim ‘vá trabalhar, vagabundo'”.

50. Paulo Sérgio, “Alfaiate” (1971) – o drama e a ternura na voz do cantor romântico que foi, de fato, alfaiate.

51. César Sampaio, “Secretária da Beira do Cais” (1975) – o sexismo, a mulher sem voz, a profissão: prostituta.

52. Julia Graciela, “Anúncio de Jormal” (1981) – o sexismo, a mulher-objeto com voz, a profissão: secretária (seria uma tia-avó da vilã sedutora do dr. Antonio Fagundes na novela das 21h?).

53. Trio Nordestino, “Canário do Reino” (1973) – o forró-soul popularizado por Tim Maia, em versão puramente forrozeira. Profissão: cantor.

54. Bebeto, “Nos Bailes da Vida” (1993) – o “profissão: cantor” essencial de Milton Nascimento e Fernando Brant, em versão samba-rock do mestiço paulista.

55. Magazine, “Sou Boy” (1983) – ainda que sob os óculos de sol do humor, Kid Vinil se faz pioneiro na inclusão à música brasileira de uma das categorias mais maltratadas de trabalhadores urbanos.

56. Molejo, “Dança da Vassoura” (1997) – o pagode não tem sido um gênero propriamente afeito às “work songs”, mas… será que vale o “vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo”?

57. Sampa Crew, “Vai à Luta” (1992) – ainda sob o formato soul-pop do Sampa Crew, o hip-hop começa a se insinuar como tradutor principal dos cantos de trabalho para o século que vai chegar.

58. Chico César, “Mama África” (1995) – A condição negra em versos agudos de Chico: “Mama África, a minha mãe/ é mãe solteira/ e tem que fazer mamadeira/ todo dia/ além de trabalhar como empacotadeira/ nas Casas Bahia”.

59. Nega Gizza, “Prostituta” (2002) – mulher-sujeito em primeira pessoa e uma outra abordagem sobre a prostituição: “Sou puta, sim/ vou vivendo do meu jeito, prostituta atacante, vou driblando preconceito”.

60. Emicida, “Rua Augusta” (2010) – uma combinação rara entre mulher-sujeito e homem-solidário.

61. Posse Mente Zulu Leci Brandão, “Dona Maria” (2004) – no início da história de Rappin’ Hood, a fusão entre o canto de trabalho de mais uma Maria (“do morro, cidadã brasileira”) e o rap de menino de favela de “Deixa, Deixa” (1985) de Leci.

62. Ogi, “A Vaga” (2011) – à procura de emprego, um dos mais afiados atualizadores dos cantos brasileiros de trabalho para o século XXI.

63. Ogi, “Eu Tive um Sonho” (2011) – mais uma do rapper, com lirismo, travessia, dor e mensagem direta: “Me apresentei pra trabalhar direto na carga pesada/ subi pontes, edifícios, minha mão já calejada”.

64. Blecaute, “Pedreiro Waldemar” (1948) – samba carnavalesco de Wilson Baptista, voz do negro Blecaute e papo reto sobre racismo e a invisibilidade social do avô do personagem do rap de Ogi: “Você conhece o pedreiro Waldemar?/ não conhece/ mas eu vou lhe apresentar/ de madrugada toma o trem na circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar/ (…) o Waldemar, que é mestre no ofício/ constrói um edifício e depois não pode entrar”.

65. Rael, “Trabalhador” (2010) – mais um ponto alto do rap de trabalho: “Você, trabalhador/ que despertou/ foi trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar/ sem tempo para o amor/ só pra trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar…”.

66. Clara Nunes Clementina de Jesus, “P.C.J. (Partido Clementina de Jesus)” (1977) – mas será que é mesmo só “trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar…”. Clementina, sacerdotisa dos cantos de trabalho, é quem responde.

 


Canções em busca de liberdade

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Ícones da música popular brasileira contam, com suas próprias palavras, o que pensam (ou pensavam) sobre limitação de liberdade de expressão, censura e opressão por parte dos mais poderosos. Mas eis que chega a roda viva e…

1. Chico Buarque, “Corrente” (1976) – nas construções ao gosto de Chico, os versos se encadeavam, se desencadeavam, mudavam de ordem e revelavam o dito pelo subdito. O termo “corrente”, além do mais, remetia a tudo que a cultura brasileira não queria: grilhão, prisão, escravidão intelectual.

2. Wilson Simonal, “Cordão” (1975) – Simonal, já caído em desgraça tantocom direita quanto com a esquerda, apanhava canção de 1971 de Chico e acrescentava camadas de significados: “Ninguém, ninguém vai me acorrentar/ enquanto eu puder cantar/ enquanto eu puder sorrir”.

3. Gilberto Gil Mutantes, “A Luta contra a Lata ou A Falência do Café” (1968) – FAROFAFÁ tem recorrido repetidas vezes a esta canção perdida do ano trágico de 1968, mas torna-se mais uma vez inevitáveis. O jovem Gil, recém-liberto da lida como funcionário de fábrica de sabonetes, satirizava o conservadorismo, o reacionarismo e o patrimonialismo dos velhos e decadentes barões do café. Mudou?

4. Caetano Veloso Mutantes, “A Voz do Morto” (1968) – o jovem Caetano ia na garganta dos barões da canção popular, já então aninhados na própria irrelevância e nos cargos de diretoria no sistema de arracadação de direitos autorais: “Eles querem salvar as glórias nacionais/ as glórias nacionais/ coitados/ ninguém me salva, ninguém me engana/ eu sou alegre, eu sou contente, eu sou cigana/ eu sou terrível, eu sou o samba”. E ainda complementava com um grito geracional de apoio: “Viva o Paulinho da Viola!”.

5. Aracy de Almeida, “A Voz do Morto” (1968) – a versão original do devastador (não-)samba de Caetano, segundo ele feita a pedido da iracunda ex-intérprete de Noel Rosa e futura jurada de calouros de Silvio Santos: “Eu sou terrível, eu sou o samba/ a voz do morto, o cais do porto, os pés do torto, a vez do louco, a paz do mundo”.

6. Caetano Veloso Mutantes, “É Proibido Proibir” (1968) – o titulo é a mensagem – e a gravação inclui o discurso irado e perplexo que Caetano fez no festival, sob vaia cerrada, perguntando “que juventude é essa?” e afirmando ao público que “vocês são iguais sabe a quem?, àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores, vocês não diferem em nada deles”. E Caetano 1968 briga de foice com o Caetano 2013: “Vocês são a mesma juventude que vão sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”, mais “o problema é o seguinte: vocês estão querrendo policiar a música brasileira”, mais “se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos”.

7. Roberto Carlos, “É Proibido Fumar” (1964) – o “É Proibido Proibir” tropicalista de Caetano dialogava de modo agridoce com uma das duas únicas canções em que Roberto se manifestou preocupado diante de alguma espécie de proibição, censura ou cerceamento.

8. Jorge Ben, “Por Que É Proibido Pisar na Grama” (1971) – Jorge, que não é de se meter nesse tipo de confusão, acordou atormentado naquela manhã de 1971: “Preciso saber urgentemente/ por que/ é proibido pisar na grama”. Por que, por quê?

9.Milton Nascimento, “Cadê” (1973) – impiedosamente censurado nas letras que seus parceiros compunham, Milton acabou por desossar o álbum Milagre dos Peixes e transformá-lo num disco quase sem palavras – mas com muitos gemidos, uivos e trinados de pássaro engaiolado.

10. Milton Nascimento, “Menino” (1976) – já prenhe de palavras, Milton fere a censura com a lâmina fina da poesia: “Quem cala sobre teu corpo/ consente na tua morte/ talhada a ferro e fogo/ nas profundezas do corte”.

11. Ney Matogrosso, “Dos Cruces” (1978) – reinterpretando uma canção do Clube da Esquina (1972) de Milton, o transgressor ex-integrante dos Secos & Molhados ataca o “monte do esquecimento” – “este é um país sem memória”, costumamos lastimar, enquanto celebramos subliminarmente todo tipo de esquecimento.

12. MárciaEduardo Gudin Paulo César Pinheiro, “Cautela/ Mordaça” (1975) – hoje diretor de sociedade arrecadadora de direitos autorais, o fino poeta Pinheiro açoita com versos a censura e a ditadura.

13. MPB 4, “Pesadelo” (1972) – também de Paulo César Pinheiro, os versos buarquianos confrontam desgraça e esperança: “Quando um muro separa uma ponte une/ (…) você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto/ de repente olha eu de novo/ perturbando a paz, exigindo o troco/ vamos por aí eu e meu cachorro, olha o verso, olha o outro, olha o velho, olha o moço chegando/ que medo você tem de nós?”.

14. Nara Leão, “Opinião” (1964) – indo buscar matéria-prima no morro com Zé Keti – e antes de todo mundo -, Nara fazia par com o “É Proibido Fumar” de Roberto já antevendo tudo que viria adiante: “Podem me prender, podem me bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião”.

15. Sérgio Ricardo, “Calabouço” (1973) – Sérgio canta em sintonia com o Calabar de Chico Buarque, peça e disco integralmente interditados pela Censura em 1973: “Cala boca, moço, cala boca, moço!”.

16. Maria Bethânia, “Cala a Boca, Bárbara” (1974) – canção-símbolo de Calabar, 55 segundos liberados para Bethânia: “Cala a boca!”.

17. Nara Leão Chico Buarque, “Vence na Vida Quem Diz Sim” (1980) – a letra censurada em Calabar volta à tona num dueto do autor com Nara, e num discurso que seria possível ouvir Chico remetendo em 2013 aos pretensos biógrafos da MPB: “Se te dão um soco/ diz que sim/ (…) se te tratam no chicote, babam no cangote/ baixa o rosto e aprende o mote, olha bem pra mim:/ vence na vida quem diz sim”. 

18. Chico Buarque, “A Voz do Dono e o Dono da Voz” (1981) – Chico andava contrariado com o poderio das gravadoras multinacionais, que arrancavam o couro do dono e da voz. Hoje talvez coubesse melhor uma versão “A Bola do Dono e o Dono da Bola”.

19. Elis Regina, “Como Nossos Pais” (1976) – outra canção recorrente por aqui, em que o jovem Belchior mexia com fogo e se voltava, já então, contra o acomodamento $$$ ético $$$ dos nossos heróis: “Nossos ídolos ainda são os mesmos/ e as aparências não enganam, não/ você diz que depois deles/ não apareceu mais ninguém/ você pode até dizer que eu tô por fora/ ou então que eu tô inventando/ mas é você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem/ hoje eu sei que quem me deu a ideia/ de uma nova consciência e juventude/ tá em casa, guardado por Deus, contando o vil metal”. Elis encampou, e seus colegas não devem ter gostado muito – nenhum deles jamais ousou reinterpretar esta canção, que cantamos muitas vezes sem nem perceber do que é que ela está falando.

20. Grupo Manifesto, “Garota Esquerdinha” (1968) – letra perturbadora, num conjunto emepebista do qual sairiam tanto a underground Lucina (da posterior dupla com Luli) quanto Gutemberg Guarabyra e o futuro mandachuva por décadas (e até hoje) das trilhas sonoras da Globo, Mariozinho Rocha.

21. Momento Quatro, “Classe Dominante” (1969) – grupo de origem da compositora Joyce, o Momento obedecia ao momento e investia contra a classe dominante, minutos antes do AI-5.

22. Paulinho da Viola, “Consumir É Viver” (1971) – uma rara canção de protesto de Paulinho, contra o… consumismo desenfreado. O que seria feito de Caras e das revistas de fofoca se só existissem paulinhos-da-viola na MPB?

23. Marcos Valle, “Garra” (1971) – ao mesmo tempo hippie e compositor da emergente Rede Globo, Marcos era a personificação do dilema, em versos e música soul de primeira: “Corro por dinheiro/ até jogar no chão meu corpo inteiro/ eu vou morar no centro da cidade/ eu não conheço nem minha cidade/ mas eu vou vencer/ se eu não morrer”.

24. Erasmo Carlos, “26 Anos de Vida Normal” (1971) – interpretando Marcos Valle em pique samba-soul-funk, Erasmão desconfiava da robotização intelectual imposta pela mídia: “26 anos de vida normal/ cinco eu passei lendo jornal/ 26 anos esperando você/ quatro eu passei vendo TV”.

25. Ronnie Von, “Meu Novo Cantar” (1969) – vejamos como são maleáveis os seres humanos – até o “pequeno príncipe” do iê-iê-iê já pediu mudança, transformação e progresso.

26. Sidney Miller, “Pois É, pra Quê?” (1968) – no monte do esquecimento da MPB, Sidney era um dos mais atentos representantes da vertente do protesto. “A gravata enforca/ o sapato aperta/ o país exporta/ e na minha porta/ ninguém quer ver/ uma sombra morta/ pois é, pra quê?”.

27. Sérgio Sampaio, “Filme de Terror” (1973) – pertencente à mesma vertente dos esquecidos de Sidney e também morto precocemente, o parceiro de Raul Seixas cutucou com vara curta os esqueletos de armário da ditadura: “Quem ousar sair de casa/ passe a tranca e feche o trinco/ no chão do cinema Império da Tijuca o cemitério do Caju”.

28. Taiguara, “Mais Valia” (1983) – terceiro maldito morto prrecocemente, em ritmo de comovente guarânia caipira: “Pra que é’ que eu quis mais dinheiro/ se quanto mais eu possuía/ mais me via interesseiro e no meu cativeiro/ mais eu te perdia?/ fiz capital te explorando/ fiz o mal nos separando/ e hoje aqui estou derrotado, um ladrão desalmado que acabou chorando/ e hoje aqui estou fracassado, um patrão desarmado/ qe acabou pagando”.

29. Gilberto Gil, “Todo Dia É Dia D” (1973) – quarto maldito, sucumbido pelo suicídio: Torquato Neto, na voz e no violão de Gilberto.

30. Gal Costa, “Três da Madrugada” (1973) – canção suicida de Torquato, daquelas de escritor que tem de lançar suas biografias de graça na internet, para driblar o aparato repressivo.

31. Tom Zé, “Parque Industrial’ (1968) – quinto maldito, este fugido do esquecimento e bem vivo até hoje: “A revista moralista traz uma lista dos pecados da vedete/ e tem jornal popular que nunca se espreme porque pode derramar/ é um banco de sangue encadernado”. Mas como proceder, se a revista moralista e o jornal popular ajudam a vender canções?

32. Paulinho da Viola, “Falso Moralista” (1972) – Paulinho canta Nelson Sargento e passa o recado reto, como diria certo candidato presidencial de 2013: “Você condena o que a moçada anda fazendo/ e não aceita o teatro de revista/ arte moderna pra você não vale nada/ até vedede você diz não ser artista/ você se julga muito bom e até perfeito/ por qualquer coisa deita logo falação/ (…) você não passa de um falso moralista”.

33. Luli e Lucina, “Coração Aprisionado” (1979) – sexta e sétima malditas, vivas, as compositoras gravadas lindamente por Ney Matogrosso e pelos Secos & Molhados cravam a flor e o espinho no desejo de liberdade: “Coração aprisionado/ não canta, não canta, amor/ há uma fera à solta, à solta, amor, dentro de mim”.

34. Fausto Nilo Núbia Lafayette, “Coração Condenado” (1979) – canção maldita do poeta-compositor de sucessos do popular Fagner cantada lindamente pela diva ultrapopular Núbia: “Condenado é quem desencadeia/ silêncio de catedrais/ nestas paisagens tão feias/ de pesadelos iguais/ e o pensamento pranteia/ porque só pensa e não faz/ um coração na cadeia/ reflete a teia mordaz/ que a minha boca receia/ e meus olhos só dizem ‘jamais'”.

35. Djavan, “Nem Um Dia” (1996) – Djavan, outro não costuma se meter em encrenca, faz seu protesto em prol de não enviarmos livros às fogueiras: “Um dia frio/ um bom lugar pra ler um livro/ e o pensamento só em você/ eu sem você não vivo”.

36. Caetano Veloso, “Livros” (1996) – ele gosta dos livros. E de citar os autores dos livros.

37. Wanderléa, “Esta Noite Eu Sonhei” (1966) – nada a ver, esta canção aqui no meio? Ah, sei lá, entende?…

38. Secos & Molhados, “El Rey” (1973) – filho de militar, Ney canta com gosto a miséria moral d’el rey.

39. Roberto Carlos, “Ilegal, Imoral ou Engorda” (1976) – aqui, a segunda canção incomodada com o proibicionismo na lista de um autor de resto ganancioso por proibições.

40. Ney Matogrosso, “América do Sul” (1975) – 1975, censura pesada, e Ney, em penas de pavão, pedia um modo novo de ver o mesmo: “Desperta, América do Sul!!!”.

41. MPB 4, “Roda Viva” (1967) – Mas de que vale tudo isso, seu Chico, se chega a roda viva e carrega tudo pra lá?

 

P.S.: Aproveite enquanto é tempo  as canções e as palavras enfileiradas acima. No que depender dos desejos dos donos dessas vozes, talvez em prazo próximo não haverá e$paço para nada parecido com i$$o no e$paço virtual  – e cultural – bra$ileiro.

 

Uma história bela e antiga

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É uma história bela e antiga. A música brasileira nunca esteve distante das crianças e a associação conheceu um ápice histórico a partir de 1960 (e ao longo de toda aquela década, e além) com a coleção Disquinho. O homem por trás da iniciativa era ninguém menos que Braguinha, o João de Barro, diretor da gravadora Continental e autor de clássicos da música (e do carnaval) do Brasil como “Carinhoso”, “As Pastorinhas”, “Cantores do Rádio”, “Chiquita Bacana”, “Yes, Nós Temos Bananas”, “Copacabana” e dezenas de outras. Algumas gerações, dali em diante, foram marcadas pelas canções orquestradas pelo maestro Radamés Gnattali, que povoavam de cor e som histórias infantis como Festa no Céu ou A Cigarra e a Formiga.

Uma dessas histórias musicadas, lançada em 1961, se chamava Os Quatro Heróis e foi uma das fontes de inspiração para uma revolução musical infantil ocorrida 16 anos mais tarde por obra de Chico Buarque. A fábula dos quatro bichos (burro, cão, gato, galo) abandonados por seus donos por estarem ficando velhos tomou ares circenses e virou Os Saltimbancos, peça teatral musicada e LP gravado com músicas e narrações.

Dois dos integrantes do conjunto MPB 4 interpretaram o jumento e o cachorro, e duas meninas entraram na história: Nara Leão como a gata, Miúcha como a galinha. O disco circula ainda hoje, seduzindo gerações com uma trama progressista de luta de classes e reivindicação de igualdade e versos hoje clássicos nos moldes de “au, au, au, hi-ho, hi-ho/ miau, miau, miau/ cocorocó”, “jumento não é, jumento não é/ o grande malandro da praça/ trabalha, trabalha de graça” e “todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer”.

saltimbancos

No mesmo ano de 1977 ocorreu outro marco indelével. A Globo estreou a série Sítio do Picapau Amarelo, inspirada na obra infantil de Monteiro Lobato, que ficaria no ar anos a fio e, logo de cara, acrescentou um álbum histórico de música brasileira infantil, sob direção musical de Dori Caymmi. Além da música-título de Gilberto Gil, canções adultas para crianças (e/ou vice-versa) ganharam vida própria em vozes como as de Sérgio Ricardo (“Emília”), João Bosco (“Visconde de Sabugosa”), Dorival Caymmi (“Tia Nastácia”) e Jards Macalé e Marlui Miranda (“Tio Barnabé”). Era de arrepiar – e é até hoje.

Secundado por Dori, Chico estava conduzindo, provavelmente sem saber, a música para crianças para um plano distinto daquele das historinhas musicadas da coleção Disquinho. Apesar da centralidade da história de Os Saltimbancos, foram as canções que sobressaíram a ponto de se descolar das historinhas e ganhar autonomia. O momento seguinte seria dado por Vinicius de Moraes, em parceria com a Rede Globo, no especial infantil A Arca de Noé, em dois episódios de 1980 e 1981.

Poemas de Vinicius para crianças ganhavam música (na maioria dos casos composta por Toquinho). No programa televisivo restavam resquícios de enredo, mas o disco viraria objeto de culto ao enfileirar canções sobre bichos (“O Pato”, “A Foca”, “A Corujinha”, “As Abelhas”, “A Pulga”, “O Leão”, “O Porquinho”, “O Peru”…) e sobre coisas (“O Relógio”, “A Porta”, “A Casa”). O elenco de cantores era estelar: Milton NascimentoElis ReginaFábio Jr.Ney MatogrossoMarina LimaFagnerTom JobimClara NunesPaulinho da ViolaGrande Otelo, e daí adiante.

O formato explodiu na tela da Globo dos anos 1980. Especiais de uma hora de duração somavam pouca história e muita música em títulos como Pirlimpimpim (1982), Plunct Plact Zuuum (1983), A Turma do Pererê (1984), entre vários. Agora não havia mais autores fixos para as canções, e diversos compositores e intérpretes colaboraram na criação de temas lembrados até hoje: “Lindo Balão Azul”, de Guilherme Arantes, com Moraes Moreira, Baby Consuelo e a menina Bebel Gilberto; “Cuca”, de Angela Ro Ro; “O Carimbador Maluco” (abaixo), de Raul Seixas; “Sereia”, de Lulu Santos, com Fafá de Belém;  “Brincar de Viver”, de Guilherme, com Maria Bethânia; “Grande Final”, de Moraes Moreira, com Gal Costa

A próxima revolução não seria tão generosa. Com Xuxa, a partir de 1986, o cancioneiro infantil perdeu em teor educativo, em esmero musical e na integração de elencos musicais criativos e audaciosos. A música para exercitar a inteligência infantil sobreviveu, nas décadas seguintes, em projetos como o Castelo Rá-Tim-Bum e o Palavra Cantada. Nesse meio tempo, artistas que eram crianças nos anos de existência de disquinhos, arcas de noé e conspirações saltimbancas sentiram saudade da própria infância (e/ou tiveram filhos) e passaram a homenagear as iniciativas agora antigas de Vinicius, Chico e demais emepebistas.

Os projetos infantis mais consistentes destes anos 2000 pertencem a essa filiação, num movimento em que atuam nomes como Zeca Baleiro, Pato Fu, Zé Renato, o trio Arnaldo AntunesEdgard ScandurraTaciana Barros (com o Pequeno Cidadão), Adriana Calcanhotto (na versão Adriana Partimpim), André Abujamra e Bixiga 70, em material frequentemente adaptado, mas também especialmente composto (em especial no projeto Pequeno Cidadão).

O Pato Fu, por sua vez, inverteu princípios dos anos 1970 e 1980: no álbum Música de Brinquedo (2010), todo tocado com brinquedos sonoros, adaptou para o imaginário infantil canções anteriormente adultas de Roberto Carlos, Rita Lee, Tim Maia, Zé Ramalho, Ritchie, Titãs e até Elvis Presley e Paul McCartney. Nesse caso, a música voltou a primeiríssimo plano, deixando à distância a fórmula antiga dos contadores de fábulas da coleção Disquinho. E assim segue a história, até que alguém venha virar tudo de ponta-cabeça outra vez.

 

(Texto publicado originalmente no site Ideias Online, do Centro Cultural Banco do Brasil, a propósito do Festival CCBB de Música Infantil Brasileira, que acontece em São Paulo nos dias 12 e 13 de outubro de 2013.

Rádio farofa: música de criança

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É bela e antiga a história da música brasileira gravada para crianças. Tem seus primórdios com Braguinha, o João de Barro, vertendo as trilhas sonoras de Walt Disney para o português. Passa por Marcos Valle Chico Buarque, transborda no Sítio do Picapau Amarelo, ganha o reforço de Xuxa e chega aos dias de hoje, com uma nova versão de A Arca de Noé, de Vinicius de Moraes.

Ouça e saiba um pouco mais sobre a música brasileira de brinquedo, via Rádio Farofa.

1. Branca de Neve e os Sete Anões, “Hi-Ho” (1938) – o canto dos sete anões da Branca de Neve de Walt Disney foi vertida ao português por Aloysio de Oliveira, que acompanhava Carmen Miranda com o Bando da Lua e viria ser o produtor por trás da invenção da bossa nova, a partir de 1958.

2. Carmen Miranda Dorival Caymmi, “Roda Pião” (1939) – Carmen visitou o universo infantil na cantiga tradicional de roda adaptada para o estúdio por Caymmi.

1957 Eu Vou pra Maracangalha3. Dorival Caymmi, “Fiz uma Viagem” (1957) – o arranjo saltitante e a presença do “tatu-bola, filho do tatu-bolinha”, faziam a cantiga de Caymmi se achegar às crianças, mas a historinha de retirantes tinha desfecho para lá de trágico: “A sorte desandou quando eu cheguei em Alagoinha/ bexiga deu na nega/ catapora na filhinha/ morreu o meu tatu-bola/ filho do tatu-bolinha/ roubaram o meu facão/ com todo o aço que tinha”.

4. Celly Campello, “Lacinhos Cor-de-Rosa” (1959) – era adulto ou infantil ou adulto ou infantil o que cantava a primeira “princesa” do rock’n’roll brasileiro?

5. João Gilberto, “O Pato” (1960) – alguém teria jamais levado esta canção a sério no universo adulto, se ela não pertencesse ao pai da bossa nova?

6. Celly Campello, “A Lenda da Conchinha” (1961) – mais uma Celly. Era para criança ou para adulto esse papo de “dobrinhas de uma concha”?

7. Sonia Delfino, “Bolinha de Sabão” (1963) – pioneiro do samba suingado, Orlandivo musicou a onomatopeia gasosa intepretada por uma das garotas da primeira dentição do rock’n’roll, pré-jovem guarda.

8. Trio Esperança, “O Passo do Elefantinho” (1963) – o trio, com a bela cantora Evinha ainda criança, infantilizava o tema hollywoodiano de Henry Mancini, o “Baby Elephant Walk”.

9. Wanderléa, “Picada da Pulguinha” (1963) – a futura “ternurinha”, ainda adolescente e pré-iê-iê-iê.

10. Giane, “Dominique” (1964) – também no limiar da jovem guarda, uma versão do francês, em interpretação antiquada mais para anos 1950 que 1960.

11. Mogli, o Menino-Lobo, “Somente o Necessário” (1964) – ainda nos domínios da Disney e de Aloysio de Oliveira, o tema do urso Balu em Mogli.

12. Roberto Carlos, “Brucutu” (1965) – a rebeldia da jovem guarda, todo mundo sabe, nunca chegou a passa da página 6, ou 4, ou 3… Os meninos do iê-iê amavam trazer presonagens das histórias em quadrinhos para o rock’n’roll.

13. Erasmo Carlos, “O Pica-Pau” (1966) – cinema HQ e uma canção original de Renato Barros (dos Blue Caps) e de Lilian Knapp (da dupla Leno & Lilian).

14. Wilson Simonal, “Escravos de Jó” (1967) – a cantiga de roda de incômodo teor racial virava pilantragem na voz do pai da matéria.

15. Osmar Milito, “Hey, Shazam” (1971) – a Globo, ela própria ainda criança, começa a abrir os olhos para a criançada, em novela, seriado e canção em tom de samba-soul-rock.

16. Vinicius de Moraes, “La Casa” (1972) – o “Vinicius para crianças” começa a tomar forma ainda na TV Tupi, na telenovela Nossa Filha Gabriela.

17. Toquinho Vinicius de Moraes, “O Pato” (1972) – da mesma trilha sonora, o pato de Vinicius é bem mais assumidamente infantil que o de João Gilberto.

1974 Vila Sésamo18. Trio Soneca, “Funga-Funga” (1974) – da trilha de Vila Sésamo, a cançoneta de Marcos Valle Paulo Sérgio Valle apelam para a empatia pelo monstro Funga-Funga – ou seja, pelo diferente e desconhecido.

19. Trio Soneca, “Gugu” (1974) – o rabugento e ranzinza monstrinho que vivia num barril reclamava da vida, mas não deixava de abrir o jogo: “Eu gosto de dizer que não preciso de ninguém/ mas quem é que consegue viver sem/ gostar de alguém?”.

20. Nara Leão, “Atirei um Pau no Gato” (1975) – Nara dedicou um disco todo, Meu Primeiro Amor, a cantigas infantis e/ou singelas. O “Atirei o Pau no Gato”, hoje mais ou menos banido por politicamente incorreto, ganhou versão de fossa com direito a troca-letras.

21. Nara Leão, MiúchaRuy Magro, “A Cidade Ideal” (1977)  – a vida urbana transtorna o quarteto gata-galinha-jumento-cachorro de Os Saltimbancos, na adaptação de Chico Buarque.

22. Nara Leão, MiúchaRuy Magro, “Todos Juntos” (1977) – após espantar “os barões”, os bichos comunistas de Chico legavam mensagem de “todos juntos somos fortes” à posteridade.

23. Papo de Anjo, “Ploquet Pluft Nhoque (Jaboticaba)” (1977) – o lúdico de comer uma frutinha tipicamente brasileira, na versão anos 1970 do Sítio do Picapau Amarelo, por Dori Caymmi Paulo César Pinheiro.

1979 Sítio do Picapau Amarelo Vol. 224. Dori Caymmi, “A Cuca Te Pega” (1979) – locução de historinha e trilha sonora coral no segundo LP do Sítio, com Cuca, Saci e gente virada em pedra.

25. Frenéticas, “Aula de Piano” (1980) – divas da discotheque, as Frenéticas plantavam uma semente de pedofilia bem no centro do primeiro volume de A Arca de Noé, o apogeu do “Vinicius para crianças”.

26. Walter Franco, “O Relógio” (1980) – concretismo, sofisticação e a voz do underground MPB, na mesma Arca.

27. A Patotinha, “Melô dos Patins (Não Empurre, Não Force)” (1980) – disco music, brincadeira e a década de Xuxa se antecipando em alguns anos.

28. Os Trapalhões, “A Velha Debaixo da Cama” (1981) – Cearense, Renato Aragão cantava e brincava para crianças, sem perder o pé do forró nordestino.

1981 2 Os Saltimbancos Trapalhões29. Chico Buarque e Os Trapalhões, “Rebichada” (1981) – Chico se engajou em pessoa, refazendo a “Bicharia” de 1977 em pique de canto de trabalho, para a adaptação cinematográfica Os Saltimbancos Trapalhões.

30. Bebel Gilberto Os Trapalhões, “Alô, Liberdade” (1981) – inédita e cantada pela sobrinha criança-adolescente Bebel, uma loa à liberdade de Chico.

31. MPB 4, “Adivinha o Que É” (1981) – a reboque do sucesso de sua versão de “O Pato” para A Arca de Noé, o quarteto gravou o disco infantil Adivinha o Que É , com muitas crianças na roda.

1981 Adivinha o Que É32. MPB 4, “A Lua” (1981) – do mesmo disco, a mais lírica e adulta das cantigas infantis.

33. Fagner, “O Leão” (1981) – o bardo cearense encarna o rei das selvas, no volume 2 da Arca de Noé.

34. Jane Duboc Turma do Balão Mágico, “Baile dos Passarinhos” (1982) – Começa a era Simony, em tema de passarinhos que seria capturado para o imaginário adulto (adulto?) de Gugu Liberato no SBT.

1982 Pirlimpimpim35. Baby Consuelo, “Emília” (1982) – Baby, hoje do Brasil, protagonizou o especial musical global Pirlimpimpim, na pele da boneca de pano que tomou uma pílula e “tagarelou, tagarelou a falar”.

36. Angela Ro Ro, “Cuca” (1981) – ainda em Pirlimpimpim, Ro Ro acrescentou malícia e sarcasmo na caverna da bruxa-jacaroa do sítio de Monteiro Lobato.

37. Lucinha Lins, “A Bailarina” (1983) – a chatice das aulas de balé, por Toquinho, no especial infantil Casa de Brinquedos.

1983 A Turma do Balão Mágico38. Djavan Turma do Balão Mágico, “Superfantástico” (1983) – o super-heroísmo no reino encantando de Simony, Jairzinho Fofão.

39. Gal Costa, “Grande Final” (1983) – um Saci Pererê meio adulto, composto por Moraes Moreira, para a adaptação global-musical d’A Turma do Pererê, de Ziraldo.

40. Maria Bethania, “Brincar de Viver” (1983) – Guilherme Arantes, que ja havia composto o “Lindo Balão Azul” (1982) para o especial Pirlimpimpim, crava um sucesso radiofônico adulto romântico no especial Plunct Plact Zuuum: “Quem me chamou?”.

41. Fafá de Belém, “Sereia” (1983) – a versão de Lulu Santos para o ser mítico dos mares, em Plunct Plact Zuuum.

1983 Plunct Plact Zuuum42. Raul Seixas, “Carimbador Maluco” (1983) – Raul para crianças, em Plunct Plact Zuuum? Pois sim.

43. Absyntho, “Meu Ursinho Blau-Blau” (1985) – pop-rock para adultos?, ou para crianças?, ou para crianças?, ou para adultos?

44. Xuxa, “Quem Qué Pão” (1986) – provavelmente o momento mais educativo da carreira infantil de Xuxa: uma cantiga para ensinar a tomar café da manhã.

45. Xuxa, “Hey Mickey” (1987) – o sucesso new-wave gringo “Mickey” (1981), de Toni Basil, vira uma história de amor romântico entre uma garota loura e o Mickey Mouse: pronto.

1988 Quero Passear46. Rumo, “Micróbio, o Dançarino Infeliz” (1988) – da vanguarda paulistana para os pequenos, Quero Passear, um disco do Rumo para crianças.

47. Rumo, “Garota Solitária” (1988) – apanhado do repertório de Angela Maria, um tema tragicômico de uma menina-moça que não sabe se é feia ou linda.

1989 Rá Tim Bum48. Edu Lobo, “Bandeira de Brasil” (1989) – o compositor e diretor musical ensina os pequenos a amar as cores do Brasil, numa primeira e sisuda versão musical para o programa Rá-Tim-Bum, da TV Cultura.

49. As Paquitas, “Eu Não Largo o Osso” (1993) – Xuxa continua a dar as cartas no primeiro momento pós-Xuxa, o programa de bichos-bonecos TV Colosso.

50. Castelo Rá-Tim-Bum, “Abertura” (1995) – André AbujamraHélio ZiskindLuiz Macedo compõem o tema de abertura de um dos mais festejados programas da história da TV Cultura.

51. Pena Branca & Xavantinho, “Caipora” (1995) – ainda do Castelo Rá-Tim-Bum, música caipira para crianças, bonita de chorar.

52. Palavra Cantada, “Criança Não Trabalha” (1998) – um libelo (para crianças?, para adultos?) contra o trabalho infantil, no projeto propriamente educativo-musical de Paulo Tatit Sandra Peres.

53. Pato Fu, “Ploquet Pluft Nhoque (Jaboticaba)” (2001) – o Pato Fu recheia a jabuticaba de peidinhos e arrotinhos, para a versão anos 2000 do Sitio do Picapau Amarelo.

54. Carlinhos Brown, “Pererê Peralta (Saci)” (2001) – o mesmo “Saci” de Guto Graça Mello, no Sítio de 1977, mas com letra e suingue timbaleiro de Brwon.

55. Zélia Duncan, “Alegria da Vida” (2002) – Zélia regrava o tema de abertura da velha Vila Sésamo, de Marcos e Paulo Sérgio Valle.

2004 Adriana Partimpim56. Adriana Partimpim, “Lição de Baião” (2004) – a persona criançadulta de Adriana Calcanhotto estreia transpondo um baião trava-língua de Jadir de Castro em 1962 para o ambiente infantil.

57. Adriana Partimpim, “Oito Anos” (2004) – versão de Calcanhotto para uma conversa entre Paula Toller e seu filho Gabriel, originalmente de 1998.

58. Falamansa Maskavo, “O Vira” (2009) – forró e reggae numa versão pós-adulta do tema de vira-vira dos Secos & Molhados (1973).

59. Arnaldo AntunesEdgard ScandurraTaciana Barros Antonio Pinto, “Pequeno Cidadão” (2009) – do rock dos Titãs (Arnaldo), do Ira! (Edgard) e da Gang 90 (Taciana) e da MPB de excelência, para crianças – e para adultos.

60.  Arnaldo AntunesEdgard ScandurraTaciana Barros Antonio Pinto, “O Sol e a Lua” (2009) – mais uma do Pequeno Cidadão, sob altas doses de lirismo divertido.

2010 Música de Brinquedo61. Pato Fu, “Frevo Mulher” (2010) – Zé Ramalho tocado com instrumentos infantis, em Música de Brinquedo.

62. Arnaldo Antunes, “O Peru” (2013) – concretismo e diversão, no peru 2013 da Arca de Noé.

63. Marisa Monte, “As Abelhas” (2013) – Marisa valseia o ex-frevo-rock nordestino que Moraes Moreira cantava na Arca de 1980.

64. Adriana Partimpim, “O Elefantinho” (2013) – uma inédita de Vinicius na nova Arca, pela persona infantil de Adriana Calcanhotto.

65. Disquinho, “Festival da Primavera (Aventuras de Aracuã)” (1969) – de volta ao início, da coleção Disquinho, história narrada e canções de passarinhos dos tempos de Braguinha, o João de Barro.

1969 Disquinho

Rádio Farofa: Ai, Carolina…

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Uma breve lista de carolinas, para cantarmos com chicos & os novos caetanos algumas das canções mais lindas deste nosso Brasil cheio de moças & moços de olhos tristes.

1969 Caetano Veloso1. Caetano Veloso, “Carolina” (1969) – gravada entre o desterro na Bahia e o exílio em Londres, a versão caetânica que o autor Chico não sabia se gostava ou detestava.

2. Luiz Wanderley, “Carolina” (1960) – de um tal Cláudio Paraíba e um tal João Barone (seria parente do nosso querido Paralama?), as pernas finas forrock’n’roll do genial (e esquecido) alagoano Wanderley.

3. Roberto Leal, “As Pernas da Carolina” (1972) – houve controvérsias: “Não são grossas nem são finas”.

4. Luiz Gonzaga, “O Cheiro da Carolina” (1956) – diz o ídolo de todos nós (inclusive de Chico): “Hum, hum, hum”.

5. Dominguinhos, ” O Cheiro da Carolina”/ “O Xote das Meninas” (1975) – discípulo de Gonzagão e futuro parceiro de Chico, Dominguinhos sanfoneia acompanhado de coral feminino.

6. Trio Mossoró, “O Tricô da Carolina” (1965) – uma Carolina sertaneja, do trio potiguar que primeiro gravou o “Carcará” que celebrizaria Maria Bethânia.

7. Os Brazões, “Carolina, Carol Bela” (1969) – a Carolina de Jorge Ben Toquinho (parceiro próximo de Chico), em versão francamente tropicalista.

8. Bebeto, “Menina Carolina” (1981) – êmulo de Jorge Ben, Bebeto mostra que o que é bom nem sempre se cria – e eventualmente pode se transformar em algo tão bom quanto.

9. DJ Marky, “LK (Carolina, Carol Bela)” (2001) – a versão drum’n’bass de Marky para a invenção samba-soul-tropicalista.

10. Jorge Ben Toquinho, “Carolina, Carol Bela” (1969) – a voz dos donos e os donos da voz.

1973 Grupo Capote no Forrock11. Grupo Capote, “Carolina Vai, Carolina Vem” (1973) – Carolina forrock, pelo grupo de Odair Cabeça de Poeta.

12. Achados & Perdidos, “Eu e a Carolina” (1974) – Carolina glam rock, quando os Secos & Molhados davam as cartas no pop nacional.

13. Elizeth Cardoso, “Carolina” (1968) – dona Elizeth, apaixonada pelo moço dos olhos tristes.

14. Nara Leão, “Carolina” (1967) – a moça que fazia a banda tocar, apaixonada pelo moço que via a banda passar.

1969 Luiz Wanderley15. Luiz Wanderley, “O Cheiro da Carolina” (1969) – Luiz (Wanderley) revisita Luiz (Gonzaga) em tempo de samba, forró, forrock, samba-jazz e samba-rock – como nós pudemos nos esquecer desse cara?

16. Seu Jorge, “Carolina” (2001) – samba-rock e a Carolina da Carolina da Carolina, “para todas as Carolinas do meu Brasil varonil”.

17. Nazaré Pereira, “O Cheiro da Carolina” (1978) – uma Carolina amazônica, acreana, paraense, exilada, desterrada.

18. Só Preto sem Preconceito, “Carolina Meu Bem” (1992) – Carolina preta – sem preconceito (mas com forte carga machista, pois não?).

19. Xangô da Mangueira, “Carolina Meu Bem” (1975) – a versão de autor (masculino) para o canto (feminino) de trabalho…

20. Ana Carolina, “Joana” (2001) – Carolina, digo, Joana “tem uma cara esquisita”, “tem uma risada careta e maldita”, “é meio problemática”… “Olha, eu detesto Joana!”, confessa Ana Rita Joana Iracema e Carolina – e pano rápido!

21. Nara Leão, “A Banda” (1966) – seria ela, Carolina, a moça que ficava à toa na vida à janela à espera – e não via o tempo passar?

1968 Nara Leão22. Nara Leão, “Lindoneia” (1968) – Lindoneia, de Gilberto Gil & Caetano, “cor parda” & o arranjo de Rogério Duprat – a prima “feia” de Carolina?

23. Chico Buarque, “Essa Moça Tá Diferente” (1970) – Carolina: mudou?

24. Chico Buarque, “Carolina” (1968) – o dono da bola, e a bola do dono.

 

 

 

 

 

Rádio Farofa: au, au, au, hi-ho, hi-ho

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Em tempos de beagles black-bloc, rotweillers e pitbulls, FAROFAFÁ oferece uma compilação de músicas de cão – e alguns outros bichinhos.

1977 Os Saltimbancos1. Os Saltimbancos, “Um Dia de Cão” (1977) – apanhar a bola-lá, estender a pata-tá, o rabo entre as pernas-nas: lealdade eterna por parte do melhor amigo do homem, segundo Chico Buarque, pela voz de Ruy, do MPB 4.

2. Roberto Carlos, “O Portão” (1974) – há os que nos sorriem, latindo.

3. Carmen Miranda, “Cachorro Vira-Lata” (1937) – Carmen gostava muito de cachorro vagabundo que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão.

4. Jorge Ben, “Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros” (1975) – ele precisava salvá-los, mas não consta que tenha conseguido.

5. Raul Seixas, “Cachorro Urubu” (1973) – passarinho (ou passarão) de quatro patas?

6. Carlinhos Brown, “Cachorro Louco” (1998) – os loucos são perigosos – dizem.

1997 O Dia em Que Faremos Contato7. Lenine, “A Balada do Cachorro Louco (Fere Rente)” (1997) – ela é pontiaguda, ela tem direção, ela fere rente, a balada do cachorro louco de Lenine e Lula Queiroga.

8. Jackson do Pandeiro, “Babá de Cachorro” (1967) – para quem pensa que a profissão de passeador de pets é uma invenção pós-tudo…

9. Moreira da Silva, “Cachorro de Madame” (1961) – há os que têm vida melhor do que a nossa.

10. Léo Canhoto & Robertinho, “Cachorro Amigo” (1982) – há os que se identificam, em tudo, com o melhor amigo…

11. Reginaldo Rossi, “Complexo de Cachorro” (1968) – eu não sou cachorro, não!

1972 2 Ele Também Precisa de Carinho 112. Waldick Soriano, “Eu Não Sou Cachorro, Não” (1972) – não, mesmo?…

13. Chiclete com Banana, “Eu Sou um Rato” (1991) – e os camundongos, quem vai salvar?

1978 Franco14. Franco, “Rock do Rato” (1978) – o samba-roqueiro Franco, pai dos KLB, antes de os meninos estenderem a pata-tá para o lobo-senador Magno Malta.

15. Kid Abelha, “Vida de Cão É Chato pra Cachorro” (1982) – Paula Toller jazzy, sonhando com la dolce vita.

16. Os Paralamas do Sucesso, “Rabicho do Cachorro Rabugento” (1989) – rock-embolada de um cachorro sofrido – e rabugento.

17. Os Paralamas do Sucesso, “Cachorro na Feira” (1989) – na feira, e rabugento.

1972 Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets18. Mutantes, “Vida de Cachorro” (1972) – me dê sua pata peluda, vamos passear.

19. Xuxa, “Meu Cãozinho Xuxo” (1986) – quanta dor e mágoa um cachorrinho pode provocar?

20. Racionais MC’s, “Estilo Cachorro” (2002) – cachorro é questão de estilo.

2009 Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe...21. Emicida, “Pra Não Ter Tempo Ruim” (2009) – pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que ele chegou longe, sobre as ondas de Dorival Caymmi

22. Pato Fu, “Canção pra Você Viver Mais” (1998) – não tem muito a ver com bichinhos, mas o disco se chama Televisão de Cachorro.

23. Zeca Baleiro, “Um Filho e um Cachorro” (2002) – pet shop mundo cão…

24. Walter Franco, “Cachorro Babucho” (1975) – babucho?, como assim, Walter?

25. Tchê Garotos, “Cachorro Perigoso” (2012) – safado, carinhoso – e pronto pra fazer amor.

26. Alceu Valença, “A Foca” (1980) – quer ver o rotweiller bater palminha pro Vinicius de Moraes?

27. Seu Jorge, “Pequinês e Pitbull” (2001) – macho daqui, poodle de lá…

2001 Kelly Key28. Kelly Key, “Cachorrinho” (2001) – é as cachorra, pou!

29. Gaiola das Popozudas, “Late Que Eu Tô Passando” (2008) – dá a patinha!

30. Buchecha, “Hot Dog” (2012) – cachorrão.

31. Bonde do Tigrão, “O Baile Todo” (2001) – só as cachorras; na verdade, não, o baile todo…

1982 Cantando no Banheiro (Singing in the Bathroom)32. Eduardo Dusek, “Rock da Cachorra” (1982)  – troque o seu por uma criança pobre…

33. Grande Otelo, “O Porquinho” (1982) – a vida dos suínos não é das mais fáceis – embora Adriana Calcanhotto para salvá-los, preservando-os da Arca de Noé 3.

34. Caetano Veloso, “O Leãozinho” (1977) – um cachorrinho de juba?, um tapinha não dói?

35. Caetano VelosoGal CostaGilberto Gil Maria Bethânia, “Peixe” (1976) – enquanto os cães ladram, este dos Doces Bárbaros faz: “Gloob”.

36. Raul Seixas, “Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)” (1975) – é gente e respira debaixo do mar.

37. Ultraje a Rigor, “Os Cães Ladram (Mas Não Mordem) e a Caravana Passa” (1989) – não é mesmo, Roger?

1987 Vida Bandida38. Lobão, “Da Natureza dos Lobos” (1987) – a natureza lupina.

39. Camisa de Vênus, “Lobo Expiatório” (1987) – não são só os bodes, e essa estupidez chega a ser histórica.

40. Edson Gomes, “Ovelha” (1992) – alguns se disfarçam sob peles falsas, como bem profetiza o reggaeman de Cachoeira.

1982 Francis Dalva41. Francis Dalva, “Ovelha Desgarrada” (1982) – há as desgarradas, lá na Ilha do Marajó.

42. Gal Costa, “Ovelha Negra” (2002) – há as negras, agora é hora de você assumir.

43. Carlinhos Brown, “O Bode” (1996) – expiatório?

44. João Gilberto, “Lobo Bobo” (1959) – boooooobo…

45. Roberto Carlos, “Lobo Mau (The Wanderer)” (1965) – e maaaaaau…

46. Jorge Ben, “O Homem, Que Matou o Homem, Que Matou o Homem Mau” (1965) – ele é o lobo do homem.

1974 1 Dimensão 7547. Wilson Simonal, “Cuidado com o Bulldog” (1974) – o homem é o bulldog do homem – e não faça dele uma arma, pois a “vítima” pode ser você, segundo ensina mestre Jorge Ben.

48. Rita Lee, “O Bode e a Cabra (I Wanna Hold Your Hand)” (2009) – os beagles, os Beatles, os bodes expiatórios, o cravo & a rosa.

49. Dercy Gonçalves, “A Perereca da Vizinha” (1964) – não é passarinha, mas está presa na gaiola.

50. Gilberto Gil, “O Veado” (1983) – temeroso, assustado, enrustido, fugidio…

1976 Do Boi Só Se Perde o Berro51. Ednardo, “Carneiro” (1974) – do boi só se perde o berro – e é justamente o que ele veio apresentar…

52. Zé Ramalho, “Admirável Gado Novo” (1979) – vocês que fazemos parte dessa massa…

1979 A Peleja do Diabo com o Dono do Céu53. Ednardo, “Berro” (1976) – somos umas vacas, retalhados neste açougue, atenção – patinho, coxão e filé, pelancas, ossos, quem quer?

54. Nelson Sargento, “Lei do Cão” (1979) – rasguei o meu diploma de bobo, não sou mais carneiro, eu agora sou lobo.

55. Erasmo Carlos, “Beatlemania” (1965) – é beaGlemania, Erasmo!, BEAGLEmania!

56. Osmar Milito, “Morre o Burro, Fica o Homem” (1973) – de Jorge Ben, sempre ele.

57. Fafá de Belém, “Bicho Homem” (1980) – o bicho-homem feminino de Milton Nascimento, como canta o sabiá.

58. Paulo André Barata, “Pauapixuna” (1978) – um cavalo no pasto, uma égua no cio, um princípio de noite…

59. Caetano Veloso, “Fera Ferida” (1987) – homem-fera. Ferida. De Roberto e Erasmo.

60. Renato e Seus Blue Caps, “Negro Gato” (1965) – há tempos não sei o que é um bom prato.

61. Os Saltimbancos, “História de uma Gata” (1977) – Nara Leão suaviza a retórica dos abusos: me alimentaram, me acariciaram, me aliciaram, me acostumaram.

1986 Cabeça Dinossauro62. Titãs, “Bichos Escrotos” (1986) – rotweillerzinho pintado, zebrinha listrada, beaglezinho peludo vão se foder.

63. Jards Macalé, “Gotham City” (1969) – há um morcego na sala principal.

64. Erasmo Carlos, “Mundo Cão” (1972) – não fico mais não, neste mundo cão.

65. Luiz Gonzaga, “Apologia ao Jumento (O Jumento É Nosso Irmão)” (1976) – não é o cachorro, mas também é nosso melhor amigo – e desenvolvimentista.

 

Rádio Farofa: deixa eu te ver, peixe

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Na água, os peixes (do rio Piracicaba, por exemplo) estão morrendo. Na terra, os ambientalistas estão chegando os ambientalistas. No ar, os urubus continuam passeando a tarde inteira entre os girassóis. E FAROFAFÁ chora com os rios, cantando músicas de peixes.

1. Doces Bárbaros (Caetano VelosoGal CostaGilberto Gil Maria Bethânia), “Peixe” (1976) – Vi o brilho verde peixe prata.

2. Erasmo Carlos, “Panorama Ecológico” (1978) – Lá vem a temporada de peixes.

3. Roberto Carlos, “As Baleias” (1981) – O gosto amargo do silêncio (Friboi) em sua boca vai te levar de volta ao mar e à fúria louca.

4. Luli & Lucina, “Suba na Baleia” (1984) – (Não) mexe com Oxum(aré).

5. Ney Matogrosso, “Homem de Neanderthal” (1975) – Caçando caramujo na beira do rio.

6. Raul Seixas, “Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)” (1975) – Tem gente trabalhando no fundo.

7. Alceu Valença, “A Foca” (1980) – Quer ver as focas bater palminha?, é dar a elas uma sardinha.

8. Alípio Martins, “Piranha” (1974) – Piranha é um bicho voraz.

9. Os Originais do Samba, “Tragédia no Fundo do Mar” (1974) – Assassinaram o camarão…

10. Beth Carvalho Zeca Pagodinho, “Camarão Que Dorme a Onda Leva” (1983) – Hoje é o dia da caça, amanhã do caçador.

11. Pagode da 27, “Resultado da Pescaria” (2012) – Tarrafeei.

12. Gang do Eletro, “Wal Pescador” (2010) – O pescador do amor tupinambá.

13. Paulo Diniz, “A Seca de 1932″ (1976) – Meu povo todo chorar.

14. Milton Nascimento, “Milagre dos Peixes” (1973) – Milagre. Dos peixes.

15. Simone, “A Sede do Peixe (Para o Que Não Tem Solução)” (1978) – Para o que não tem solução?

16. Luli & Lucina, “Tripa de Peixe” (1982) – No fundo do peixe, água de moiá.

17. Tetê Espíndola, “Cunhataiporã” (1982) – E descer o rio Paraguai cantando as canções que não se ouvem mais.

18. Rogério Duprat (com Rita Lee), “De Papo pro Á” (1970) – Não quero outra vida pescando no rio.

19. Inezita Barroso, “Rio de Lágrimas” (1972) – O rio de Piracicaba vai jogar peixes fora.

20. Gordurinha, “Vendedor de Caranguejo” (1960) – Eu podia descansar, mas continuo vendendo caranguejo.

21. Lopes Bogéa, “O Homem do Peixe” (1988) – Açoite de maresia maranhense.

22. Sivuca, Hermeto Pascoal e Gloria Gadelha, “Samburá de Peixe Miúdo” (1978) – No mar de areia eu vi a sereia cantar.

23. Clara Nunes, “Peixe com Coco” (1980) – É um peixe com coco? Eu vou lá.

24. Pinduca, “Siri e Caranguejo”(1974) – É o siri mais o caranguejo, papai, que vêm na ponta do pé.

25. Jackson do Pandeiro, “Atum” (1964) – Qual é o peixe? Qual é o peixe?

26. João Gilberto, “O Sapo” (1970) – Gorongondon.

27. Gal Costa, “A Rã” (1974) – A rã, o sapo, o salto de uma rã.

28. Jackson do Pandeiro, “Cantiga do Sapo” (1959) – Me diz quanto foi?

29. Baiano & Os Novos Caetanos (Chico Anysio Arnaud Rodrigues), “Perereca” (1975) – Lá no Central Park tem uma lagoa.

30. Renato Teixeira, “O Sapo” (1973) – Olha, escuta o sapo.

31. Tetê Espíndola, “Piraretã” (1980) – Olhos de jacaré.

32. Dorival Caymmi, “O Vento” (1957) – Curimã lambaio.

33. Tom Zé, “Peixe Viva (Iê-Quitingue)” (2000) – Lambaio enguia curimã.

34. Titãs, “Felizes São os Peixes” (1993) – Felizes?

35. Elis Regina, “Querelas do Brasil” (1978) – O BraZil não merece o Brasil. O BraZil tá matando o Brasil.

36. Cilibrinas do Éden (Rita Lee Lucia Turnbull) (1973) – Os mercadores da grande cidade, contando almas, vendendo mentiras, ficando ricos, bebendo fumaça.

37. Ney Matogrosso, “Pedra de Rio” (1975) – Você é meu rio e eu pedra de rio – sem peixe?

38. Nara Leão, “Suíte dos Pescadores” (1965) – Um peixe bom eu vou trazer.

39. Milton Nascimento, “Peixinhos do Mar (Cantiga de Marujada)” (1980) – Quem me ensinou a nadar foi, foi, marinheiro, foi os peixinhos do mar.

40. Inezita Barroso, “Peixe Vivo” (1958) – Como pode, o peixe morto?

41. Milton Nascimento, “Peixinhos do Mar (Cantiga de Marujada)” (1980) – Ê, nós, que viemos de outras terras, de outro mar.

 

É proibido (se) exaltar?

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Da paixão correspondida entre a música brasileira e o regime ditatorial do gaúcho Getúlio Vargas, nasceu o Brasil-exaltação:  Heitor Villa-Lobos, “Bachianas Brasileiras”, Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”, “Isto Aqui o Que É”, Rádio Nacional, Francisco Alves Dalva de Oliveira, a exaltação à Bahia-berço-do-Brasil…

O ufanismo à la Barroso era bajulatório, barroco, rococó, escalafobético, um tanto rebimbocado da parafuseta. Mas naquele tempo, parece, não era feio, errado, pusilânime ou calhorda exaltar, ufanar, ostentar, afirmar amor ao Brasil.

E, sim, a “era de ouro” dos “cantores do rádio” era feita de ditadura e abdicação e sujeição a Walt Disney e aos Estados Unidos da América do Norte. Carmen Miranda, a carioca que parecia baiana, mas era portuguesa, não gostou da ~ditadura~ e foi viver ~liberdade~ internacional braZileira, interpretando subalternas mexicanas em filmes de Hollywood. Dos píncaros da glória, só voltou morta ao Rio de Janeiro.

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O ditador virou presidente democraticamente eleito. A elite cafeeira não gostou da ditadura da democracia. UDN. Carlos Lacerda. Um ET cigano plantou Brasília no coração do Brasil: Juscelino Kubitschek. Eleições, democracia, bossa nova, república rycah de Ipanema y Copacabana.

João Gilberto, único baiano sertanejo feminino entre os garotos machinhos de Ipanema, destoou da fórmula praia-exaltação e, no corridinho das décadas, exaltou à vera a Bahia (e o Rio) e o Brasil: “Samba da Minha Terra” e “Saudade da Bahia” (ambas de Dorival Caymmi), “Na Baixa do Sapateiro” e “Aquarela do Brasil” (de Ary Barroso), “Eu Vim da Bahia” (do pupilo manso-e-rebelde Gilberto Gil), “Bahia com H” (do paulista-de-pseudônimo-anglo Denis Brean), “Canta Brasil” (dos – será? – getulistas David Nasser Alcyr Pires Vermelho), “Adeus América” (de Haroldo Barbosa Geraldo Jaques)…

1964. MPB. 1968. Tropicália. AI-5, 13 de dezembro de 1968 (dia do aniversário de Luiz Gonzaga, eterno legalista admirador de Lampião). Os Estados Unidos da América do Norte invadem a América Latina inteirinha, e o BraSil, e o ufanismo braZilEUA vira a água que sai de todas as torneiras.

Gilberto GilCaetano VelosoGal CostaRogério DupratTorquato NetoMutantesTom Zé, CapinanJúlio Medaglia e a ex-garota-de-Copacabana Nara Leão, entre vários outros, inventam a trans-exaltação. Exaltam para esculhambar, debocham para exaltar: “Tropicália”,  “Soy Loco por Ti, América”, “Marginália II”, “Panis et Circensis”, “Miserere Nobis”, “Parque Industrial”,  “Geleia Geral”,  “Três Caravelas”, “Lindoneia”, “Bat Macumba”, “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia”, “Yes, Nós Temos Bananas” (de Braguinha), “A Voz do Morto”, “São São Paulo”, “Divino, Maravilhoso”, “2001”, “Aquele Abraço”, “Meu Nome É Gal”, “Jimmy, Renda-Se”, “Chão de Estrelas” (de Orestes Barbosa Silvio Caldas)…

Copa do Mundo de 1970. Wilson Simonal, “País Tropical”, Jorge BenPeléJair RodriguesToni Tornado, Tim Maia, black power, Vera Fischer, Arlete Salles, Rede Globo, repressão-power, “pra frente, BraZil!”, “ame-o ou deixe-o”, “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”, Os IncríveisDom & Ravel, Ultragaz, O Pasquim, esquerdireitas (des)unidas, avante. Elza Soares (& Garrincha). Dilma Rousseff torce pela seleção brasileira entre uma sessão de tortura e outra.

É proibido torcer pelo BraZil: você é um traidor da pátria assaltada por ditadores (civil-)militares.

É proibido torcer contra o BraSil: você é um comunista comedor de criancinhas do iê-iê-iê.

É proibido fumar, é proibido pisar na grama, e os adaptadores tropicalistas do “é proibido proibir” foram expulsos do BraZSil.

O Festival Internacional da Canção, do aparato Globo-Time-Life, e a Copa do Mundo ensaiam se tornar mensagens brasileiras atiradas em garrafas latino-americanas nos oceanos do mundo. Há tortura (experimente perguntar para a hoje presidenta do BraSil), e o mundo não pode saber, senão cortem-lhe as cabeças! Vão-se as cabeleiras black power de Simonal, Tornado, Erlon Chaves etc. e tal.

A exaltação chega ao ápice com a vitória do BraZil na Copa de 1970, para logo em seguida iniciar seu mais longo e persistente inverno de hibernação. O sinal está fechado para nós, que somos jovens – BelchiorElis Regina, mais uma “Aquarela do Brasil” (misturada com o tema racista “Nega do Cabelo Duro”, de Rubens Soares  com o também-jornalista David Nasser), as “Águas de Março” fechando o verão (até mesmo na Cantareira).

1975, 1976. Fechadas as comportas do BraSZil-exaltação, há quem tente a brecha latino-americana – e a Latino América é toda ditaduras. “América do Sul”, com Ney Matogrosso. “Los Hermanos” e “Gracias a la Vida”, com Elis. “Volver a los 17″, com Milton Nascimento (e Mercedes Sosa). “Soy Latino Americano”, com Zé Rodrix. Não vai durar muito a latino-ostentação.

Vem a reação pós-tropicalista ao “ame-o ou deixe-o”, e a exaltação já não é a um país ou a um continente: “O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”, “o seu amor, ame-o e deixe-o ir aonde quiser”, “o seu amor, ame-o e deixe-o brincar, correr, cansar, dormir em paz”, cantaram os Doces Bárbaros Caetano, Gal, Gil e Maria Bethânia.

Anos 1980, 1990. O yuppismo norte-americanizado invade as redações moderninhas do eixo Tradição-Família-Propriedade, do eixo Rio-São Paulo. Gravadoras multinacionais, Organizações Globo e Folha de São Paulo manietam a indesejada redemocratização, e deus-nos-livre de qualquer ufanismo nem exaltação: “A gente somos inútil!”. Leonel BrizolaLuiz Inácio Lula da SilvaFernando Collor. Prepara-se o ~consenso~ neoliberal. (“Falsa Baiana”, 1944, de Geraldo Pereira.Fernando Henrique Cardoso.

“Sinais de vida num país vizinhEUA, eu já não ando mais sozinhEURO”, “bichos escrotos, saiam dos esgotos”, “se cheira pra todo lado: que país é este?”, “quem são os ditadores do partido colorado?, o que é democracia ao sul do Equador?, quem são os militares ao sul da cordilheira?, quem são os assassinos dos índios brasileiros?, quem são os estrangeiros que financiam o terror em Parador?”, “mostra tua cara!”. Renato RussoCazuza, Marina LimaTitãsIra!, Paulo RicardoRoger MoreiraLobão: proibidão-exaltação.

É proibido (se) exaltar. É proibido ufanar. Canção de protesto é proibida – além de ser cafona, chata, panfletária. O neoliberalismo jornalístico musical braZilEUA exalta Blur Oasis enquanto massacra o amor-próprio e a auto-exaltação-ostentação, devidamente garroteado pelo ideário político dos chefes mais ~altos~ das redações (e, evidentemente, dos patrões e dos patrõe$ dos patrões).

É proibido protestar contra o BraZil porque é proibido exaltar o BraSil porque é proibido ostentar o orgulho braSileiro porque as canções de protesto de Geraldo Vandré Mano Brown Marcelo Yuka são chatas cafonas fanáticas panfletárias ~esquerdinhas~.

Esmorecida(s), a(s) ditadura(s) faz(em) últimos refúgios nas redações, no Jornal Nacional, na OMB, na OAB, na TFP, no CCC, na monarquia, na sujeição a Washington. As ditaduras encolhem, mas vigoram.

A exaltação migra para o corpo: pagode, lambada, fricote, axé music, forró, brega. Segura o Tchan, amarra o tchan, libera o tchan! Quem não gosta do corpo bom sujeito não é – e, nos nichos de ditadura, é proibido gostar do corpo.

Então Luiz Inácio Lula da Silva, então Gilberto Gil & Juca Ferreira no Mini(mi)stério das Culturas, então Dilma Rousseff.

Então o rap. O funk. O tecnobrega. O forró eletrônico. O lambadão. O sertanejo universitário. O Teatro Mágico. A tchê music. O funk do pré-sal (canção 104 abaixo). O funk-ostentação. O funk brasileiro. (Os MCs assassinados pelo aparato civil-militar paulista.)

Enquanto a MPB é sistematicamente (auto)calada pelas ditaduras midiáticas, o BraSil profundo SE exalta, à margem das desmaiadas gravadoras e das moribundas redações. A Globo se debate para submeter Gaby AmarantosMC Guime – esse jogo não pode ser zero a zero!

O sinal permanece fechado para nós que somos velhos, mas está novamente aberto para nós que somos jovens.

Mas está aberto, ou está fechado, o velho sinal de Paulinho da Viola?

Por que, em plena Copa do Mundo do BraSil, a música braSileira guarda uma mordaça atada à face por entre black blocs e anonymous e rappers brancos norte-americanos vestidos de pula-brejo numa cerimônia junina que sabota a neurociência braSileira?

Por que as arenas de futebol estão invadidas e dominadas e domadas por caras-pálidas fantasiados de verde e amarelo (cores que, na maior parte do tempo, os caras-pálidas odeiam)?

Por que não toca música brasileira na Copa da mais pujante DEMOCRACIA que já tivemos?

Quando foi que, neste longo caminho, nos auto-interditamos de exaltar, de nos exaltar e de (por que não?) exaltar os nossos contra-irmãos?

Junho de 2014, BraSil braZileiro. (Assis Valente, mulato baiano homossexual suicida.) A mídia BraZil braZileuro braZilEUA, após quatro anos ininterruptos de profecia do caos, assassina Mãe Menininha do Gantois e se consuma na recém-falecida Mãe Dinah.

#NãoVaiTerCopa. PSOL. Marina Silva. Bradesco, Natura, Itaú-Kaiowá. Caos aéreo. Caos energético. Caos terrestre. (Caos hídrico ou metroviário, jamais!) Caos subterrâneo. CAAAAAAAOOOOOOOOOOZ BRAZYLEYRO!!!!!! Glauber RochaSérgio Ricardo, Jorge MautnerProfeta Gentileza (gera gentileza).

E o mundo chega ao BraSZil. A mídia braZileura anunciara e garantira que não ia chegar, mas chega, chegou.

Se em 1970 braSileiros se exilavam no chamado ~Primeiro Mundo~ e levavam para fora notícias da tortura braZilEUA, hoje é o mundo que vem aqui nos visitar e contar para nós-braSileiros e eles-braZileiros que o BraSil é UM POUCO diferente daquilo que os anfitriões da festa & $eu$ patrõe$ andaram pintando. Um pouco. Diferente. Ronaldo, fenômeno de vergonha alheia (ou não-alheia, porque NOSSA).

Nas ruas, florestas e praias amazonenses, gaúchas, cariocas e baianas do Bra$il, holandeses, argentinos, ingleses e croatas fazem o carnavalito para bailar. Nós-braSileiros, por enquanto, assistimos de braços meio cruzados oa inesperado, surpreendente, inimaginável espetáculo que nós mesmos proporcionamos. Sem ostentação. Sem exaltação. Sem exaltar. Sem NOS exaltar. Agora antimacunaímicos. Porque vivemos numa democracia plena que (ainda) nos proíbe de (nos) exaltar.

 

P.S. 100% leigo sobre futebol: merece ganhar a Copa do Mundo um país que não se ufana, não se exalta, não se emociona, não se orgulha de si e não mergulha de cabeça nas suas paixões? Particularmente, acho que não merece…

P.S. 50% leigo sobre música: segue abaixo uma radiola sonora (a música) e uma listagem escrita (o jornalismo) de 108 canções ufanistas (a política) de BraSil-exaltação (o esporte) de samba-ostentação (a cultura). Podiam ser 1.008. Ou 10.008. Ou quantas os srs. e sras. compositoras decidam nos presentear dora dora dora em diante.

(P.S. os dois vídeos acima foram incluídos posteriormente, em 8 de julho de 2014, dia da derrota da seleção brasileira para a Alemanha.)

 

1. João GilbertoCaetano Veloso Gilberto Gil, “Aquarela do Brasil” (1980) – samba-exaltação mais eloquente da era Getúlio Vargas, foi composto em 1939 pelo mineiro Ary Barroso e gravado originalmente pelo carioca Francisco Alves – 41 anos mais tarde, ainda na vigência da ditadura civil-militar de 1964, a tropicália e o homem-vertente-baiana da bossa nova aprovavam.

2. Francisco Alves Dalva de OIiveira, “Brasil!” (1939) – o índio civilizado?, e abençoado por Deus??

3. Francisco Alves, “Aquarela do Brasil –  1ª Parte” (1939) – o mulato risoneiro???

4. Francisco Alves, “Aquarela do Brasil –  2ª Parte” (1939) – o Zé Carioca?, o Pato Donald??

5. Jorge Goulart, “Isto Aqui o Que É” (1949) – este Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz, um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça.

6. Marlene, “Lata d’Água” (1952) – o morro-exaltação: sobe e não se cansa, lá vai Maria (e lá vai Marlene, que a Copa do Brasil de 2014 nos levou e que FAROFAFÁ homenageia com amor e emoção).

1956 Lá Vem o Brasil7. Inezita Barroso, “Lá Vem o Brasil” (1956) – caipira e interiorano, o BraSil da paulista Inezita é dos tamoios, de pai joão, da mãe preta, das violas, de Lampião, do candomblé, do samba, do braseiro das suas fogueiras, das noites bonitas de junho…

8. Dorival Caymmi, “Samba da Minha Terra” (1957) – quem não gosta do Brasil bom sujeito não é: é ruim da cabeça, ou é doente do pé.

9. Angela Maria, “Canta, Brasil” (1957) – a exaltação getulista de Alcyr Pires Vermelho e David Nasser, toda exacerbada, seus ~ritmos bárbaros~, suas reservas de prantos, sua voz enternecida, sua ~alegria~ macunaímica.

1957 Eu Vou pra Maracangalha10. Dorival Caymmi, “Saudade da Bahia” (1957) – porque Bahia é um pedacinho de Brasil, iaiá – o pedaço mais orgulhoso de si?

11. Blecaute, “A Voz do Morro” (1959) – Juscelino Kubitschek, Brasília, Zé Keti: eu sou o samBrasil, a voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor.

12. Luiz Gonzaga, “Marcha da Petrobras” (1959) – nove anos antes de se tornar sustentador disciplinado da ditadura civil-militar, Gonzagão era um nacional-getulista petrolífero: “Brasil, eu Brasil, tu vais prosperar, tu vai, vais crescer ainda mais com a Petrobrás”.

13. Gilberto Gil, “Povo Petroleiro” (1962) – desconhecido, anônimo, pré-tropicalista, pré-MPB: Gilberto Gil petroleiro, está jorrando petróleo das terras da nossa Bahia!

14. Inezita Barroso, “Hino à Bandeira Brasileira” (1964) – começa a ditadura civil-brasileira do dia da mentira, sob o lindo pendão da ~esperança~,  símbolo ~augusto da paz~.

15. Doris Monteiro, “Deus Brasileiro” (1964) – um ufanismo bossa-novista, na aurora de nova ditadura, da clave do jovem Marcos Valle: quem nasceu na minha terra nem sabe o que é guerra.

16. Elizeth Cardoso, “400 Anos de Samba” (1965) – escreve-se no asfalto a história do Rio de Janeiro – e do Brasil.

17. Gal Costa, “Eu Vim da Bahia” (1965) – do Gilberto Gil pós-petroleiro, pré-tropicalista, sempre baianista: eu vim da Bahia contar tanta coisa bonita que tem.

1965 Rancho da Praça Onze18. Dalva de Oliveira, “A Bahia Te Espera” (1965) – Bahia-exaltação, da magia, dos feitiços, da fé, dos saveiros, do candomblé, do vatapá, de Iemanjá – ela te espera.

1966 1 Artista de Circo19. Tonico & Tinoco, “Percorrendo Meu Brasil” (1966) – o Brasil tem Rio Grande, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais…? Tem, sim, sinhô.

20. Paulo Diniz, “Brasil, Brasa, Braseiro” (1967) – samba-soul-exaltação: salve o povo brasileiro!, gente que nem formigueiro!

21. Caetano Veloso, “Soy Loco por Ti, América” (1968) – a manhã tropicalista se inicia, tendo como colores la espuma blanca de Latino América y el cielo como bandera.

22. Sidney Miller, “História do Brasil?” (1968) – o velho Lamartine Babo e a antitropicália, do guarani ao guaraná: quem foi que inventou o BraZil?

1968 Tropicália ou Panis et Circensis23. Caetano VelosoGilberto Gil, Mutantes Gal Costa, “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia” (1968) – dessa sagrada colina, mansão da misericórdia, dai-nos a graça divina da justiça e da concórdia – oi?

24. Noriel Vilela, “Saudosa Bahia” (1969) – são tempos de exílio, está fazendo três semanas que eu saí de lá.

25. Gilberto Gil, “Aquele Abraço” (1969) – ora, vamo-nos embora, mas o Rio de Janeiro continua lindo.

1969 Jorge Ben26. Jorge Ben, “País Tropical” (1969) – Brasil, eu fico!

27. Wilson Simonal, “Aqui É o País do Futebol” (1970) – Brasil está vazio na tarde de domingo, né?

28. Tom Jobim, “Brazil” (1970) – do exílio cultural, nosso branquelo inzoneiro.

29. Milton Nascimento, “Para Lennon McCartney” (1970) – por que vocês não sabem do ~lixo~ brasileiro?

1970 Quero Voltar pra Bahia30. Paulo Diniz, “Quero Voltar pra Bahia” (1970) – I don’t want to stay here, I wanna to go back to Brazil.

31. Mutantes, “Chão de Estrelas” (1970) – morro-exaltação de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, paulistano-tropicalizada.

32. Jair Rodrigues, “Martim Cererê” (1971) – o coração de Jair não aguentou esperar pela Copa de 2014, vir cá Brasil ler sua mão, que grande destino reservaram pra você?… (com as mais profundas homenagens de FAROFAFÁ a São Jair).

33. Baden Powell, “Brasiliana” (1971) – e quem disse que são necessárias palavras para ufanar, São Baden?

34. Vinicius de MoraesMarília Medalha Toquinho, “A Bênção, Bahia” (1971) – os afro-samba-exaltação!!!, nós viemos dormir no colinho de Iemanjá.

35. Tim Maia, “Meu País” (1971) – de volta dos Estados Unidos da América, onde amargou cana, Tim dá um passa-moleque encabulado na viralatagem: sim, bem, sei que aprendi muito no seu país, porém no meu país senti tudo o que quis.

36. Jorge Ben, “Porque É Proibido Pisar na Grama” (1971) – Ben-exaltação, acordado com uma vontade de abraçar o mundo no colo do Brasil.

1971 Terra Boa37. Dom & Ravel, “Terra Boa” (1971) – terra boa, terra boa, tá nascendo tudo – e a esquerda brasileira não perdoará dois ~caipiras~ do fundão do apoio popular à ditadura de direita.

38. Elis Regina, “Exaltação a Tiradentes” (1971) – em nova onda de samba-exaltação, a MPB revive os enredos ufanistas das décadas anteriores, até para revalidar nas barbas de Tiradentes as barbas de Jesus Cristo.

39. Dom & Ravel, “Você Também É Responsável” (1971) – ou você NÃO é, NUNCA, responsável por NADA que seu país cria e destrói?

40. Jorge Ben, “Salve América” (1972) – salve América – América Latina, SOUTH América. Permaneceu inédita em 1972…

1972 2 Sangue, Suor e Raça41. Elza Soares Roberto Ribeiro, “Swing Negrão/ Brasil Pandeiro/ O Samba Agora Vai/ É com Esse Que Eu Vou” (1972) – suingue do negrão brasileiro para o tio Sam tocar pandeiro e o mundo sambar: o litoral.

1972 2 Índia42. Cascatinha & Inhana, “Relíquias Sertanejas” (1972) – ó meu sertão do meu país, aqui na roça vivo alegre e sou feliz: o interior.

43. Roberto Carlos, “A Montanha” (1972) – a exaltação a um deus, já que anda difícil exaltar um país…

44. Dercy Gonçalves, “A Perereca da Vizinha” (1964) – não tem nada a ver com a cronologia, nem com o tema, mas, sei lá, é Copa, deu vontade de colocar aqui. Afinal, a vizinha é boa-praça, a vizinha é camarada.

45. Wilson Simonal, “Saravá” (1972) – Para não falar que não falamos de quando quisermos falar com Deus: Salve o povo de aruanda, a terra de nagô, muita paz e amor na Terra, o reino do senhor!

46. Ronnie Von, “Cavaleiro de Aruanda” (1972) – quem é esse cacique?

47. Antonio Marcos, “O Homem de Nazareth” (1973) – ou vamos seguir com fé tudo que nos ensinou o… Brasil?

48. Raul Seixas, “Al Capone” (1973) – quem é que te orienta, senhores não-samba-exaltadores?

49. Synval Silva, “Brasil, Explosão de Progresso” (1973) – Brasil, gigante do universo, explosão de progresso, passado de glória, lutas, amor, vitória, união das raças, miscigenação…

50. Pessoal do Ceará, “Terral” (1973) – Ednardo e a nata do lixo, o luxo da aldeia, o Ceará.

51. Cartola, “Alvorada” (1974) – Mangueira-exaltação, ninguém chora, não há tristeza, não existe dissabor.

1974 A Senha do Novo Portugal52. Nara Leão, “Grandola, Vila Morena” (1974) – Nara, a bossa, a fossa, a Coroa Portuguesa, o Brasil, a nossa imensa dor.

1974 Brasil com _S_53. Rogério Duprat, “Isto Aqui o Que É” (1974) – o maestro paulistropicalista, exilado dos companheiros de invenção, pós-exaltador num disco denominado Brasil com S.

54. Mano Décio da Viola, “Heróis da Liberdade” (1974) – um samba-exaltação composto com Silas de Oliveira para as avenidas?, ou um dos maiores libelos antiescravagistas da história da humanidade?

55. Ademilde Fonseca, “Brasileirinho” (1975) – brasileirinho Waldir Azevedo, um desacato quando chega no salão global.

1975 Volume 256. Baiano & Os Novos Caetanos, “Ameriqueiro” (1975) – Chico Anysio Arnaud Rodrigues, samba-rock, samba-soul & forró-samba: não sou americano com meu pouco dinheiro eu sou brasiliano e se não me engano sou ameriqueiro.

57. Martinho da Vila, “Aquarela Brasileira” (1975) – o Brasil-exaltação tem Amazonas, Pará, Marajó, Ceará, Tupã, Bahia, Pernambuco…? – tem, sim, sinhô Silas de Oliveira!

58. Ney Matogrosso, “América do Sul” (1975) – desperta, América Brasileira!

59. Zé Rodrix, “Soy Latino Americano” (1976) – muita gente me censura e acha que eu estou errado.

1976 1 Tim Maia Racional e Coro Racional60. Tim Maia Racional, “Brasil Racional” (1976) – nada de fuzil, nada de canhão – uma marchinha-exaltação para o Universo em Desencanto?! #SóNoBraZil! 

1976 Wando61. Wando, “O Rei” (1976) – pré-~brega~, Wando cerze o épico-exaltação do rei que se despe e vira passageiro de trem.

62. Joyce, “Nacional Kid” (1976) – ele é um rapaz brasileiro, mas sua identidade secreta braZileira ficou inédita em 1976…

63. Maria BethâniaGilberto GilCaetano Veloso As Gatas, “As Ayabás” (1976) – as orixás e a mulher-exaltação: nem um outro som no ar, eu agora vou bater para todas as moças.

64. Maria Bethânia, “A Bahia Te Espera” (1976) – e para mãe Dalva também.

65. Benito di Paula, “Tudo Está no Seu Lugar” (1976) – no Brasil braZileiro do ~milagre~, tudo está no seu lugar, graças ao(s) Rei(s).

66. Novos Baianos, “Ninguém Segura Este País” (1978) – por um Gilberto Gil pré-pós-ufanista: é moda dizer que baiano está por cima, e entra ano e sai ano e mais um carnaval de lascar o cano – mas e o país?

67. Bebeto, “Céu Aberto Colorido” (1978) – que felicidade, que grande alegria por eu ter nascido no país de maravilha.

68. Edu Lobo, “O Trenzinho do Caipira” (1978) – nem bossa, nem MPB, muito menos tropicália, Edu revalida a exaltação getulista de Heitor Villa-Lobos pelos trilhos moídos dos interiores.

69. Elizeth Cardoso, “Bachianas Brasileiras Nº 5 – 1ª Parte da Ária (Cantilena)” (1979) – Villa-Lobos, David Nasser e este céu vazio de esperança…

1979 Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo70. Belchior, “Brasileiramente Linda” (1979) – linda mente brasileira, oh yes.

71. Elis Regina, “O Bêbado e a Equilibrista” (1979) – anistia-exaltação, enquanto a tarde ditatorial começa a cair e nos leva Elis.

72. Alcione, “Dia de Graça” (1979) – avenida-exaltação, pela pena poética do militar Candeia.

1980 Brasil Mestiço73. Clara Nunes, “Brasil Mestiço Santuário da Fé” (1980) – exaltação amarga de Paulo César Pinheiro, desde o tempo da senzala enquanto mais chicote estala e o povo se encurrala.

74. Martinho da Vila, “O Grande Presidente” (1980) – presidente-exaltação: Getúlio Vargas, estadista, idealista, realizador, grande presidente de valor. Pode, Arnaldo Antunes?

1980 Luiz Gonzaga75. Luiz Gonzaga, “Sou do Banco” (1980) – eu sou do banco, do banco, do banco, mas de qual banco? Do Banco do Brasil. (Do mesmo compacto duplo que conteve a versão gonzaguiana de “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)”, de Geraldo Vandré.)

1982 Fruto do Suor76. Raíces de América, “Soy Loco por Ti, América” (1982) – desperta, América Mais-Que-Brasileira!

77. Rita Lee João Gilberto, “Brazil com S” (1982) – porque terra linda assim não há, com tico-ticos no fubá, quem te conhece não esquece.

78. Dori Caymmi, “Samba do Carioca” (1983) – vamos, brasileiro, sai do teu sono devagar…

79. Elza Soares, “Heróis da Liberdade” (1985) – o mais lindo libelo antiescravagista, na mais linda voz pró-liberdade: exaltação, por todos os poros.

1984 Gagabirô80. João Bosco, “Jeitinho Brasileiro” (1984) – porque o negócio é levar vantagem em tudo, mora?

81. Leci Brandão, “Isso É Fundo de Quintal” (1985) – quintal-exaltação: é pagode pra valer!

82. João Bosco, “Da África à Sapucaí” (1986) – lirismo África-Brasil: exaltação.

1986 João Gilberto Live at the 19th Montreux Jazz Festival83. João Gilberto, “Adeus América” (1986) – para Carmen Miranda, que só pôde voltar morta.

84. Olodum, “Revolta Olodum” (1989) – retirante, ruralista, lavrador: revolta-exaltação?

1989 Roberto Carlos85. Roberto Carlos, “Amazônia” (1989) – a ascensão de Fernando Collor, o índio capixaba e a Amazônia, insônia (oi?) do mundo.

86. Daniela Mercury, “Menino do Pelô” (1991) – todo menino do Pelô sabe exaltar o tambor.

87. Grupo Raça, “Da África à Sapucaí” (1991) – o lirismo de João Bosco de Minas Gerais, em pagode-exaltação.

88. Gal Costa, “Tropicália” (1992) – já sob o crepúsculo de Fernando Collor, a manhã tropical se irradia.

1992 Presidente Caô Caô89. Bezerra da Silva, “Eu Sou Favela” (1992) – a favela-exaltação se levanta: nunca foi reduto de marginal!!! – e essa verdade não sai no jornal.

90. Cidinho & Doca, “Rap da Felicidade” (1993) – o funk-exaltação!

1995 Da Lata91. Fernanda Abreu, “Brasil É o País do Suingue” (1994) – e deixa solta essa bundinha.

92. Grupo Fundo de Quintal, “Brasil Nagô” (1994) – se mandarem me chamar eu vou, sou brasileiro, sou nação nagô.

93. Chico César, “Mama África” (1995) – mãe-exaltação, solteira, mamadeireira, empacotadeira nas Casas Bahia.

94. Daúde, “Vida Sertaneja” (1995) – sertão-exaltação: modernidade.

1998 Moro no Brasil95. Farofa Carioca, “Moro no Brasil” (1998) – Seu Jorge e um novo modelo de amor-próprio: moro no Brasil, não sei se moro muito bem ou muito mal, só sei que agora faço parte do país: a ~beleza~ que nos perdoe, mas a inteligência é fundamental.

96. SNJ, “Se Tu Lutas Tu Conquistas” (2000) – rap-exaltação do Somos Nós a Justiça: as periferias se erguem.

2002 Nada Como um Dia Após o Outro Dia97. Racionais MC’s, “Negro Drama” (2002) – sente o drama, sente um novo caminho que se abre para o Brasil na esquina entre 2002 e 2003.

2005 Sujeito Homem 298. Rappin’ Hood e Arlindo Cruz, “Muito Longe Daqui” (2005) – rap-pagode-favela-exaltação: numa cidade muito longe, muito longe daqui, que tem favelas que parecem as favelas daqui…

99. Matéria Rima, “De Rolê pelo País” (2005) – rap-forró-exaltação: minha vida é andar por este país…

100. Banda Fruto Sensual, “Coisas de Santa Izabel” (2010) – tecnobrega-exaltação às coisas das periferias paraenses.

101. Gang do Eletro, “Panamericano” (2010) – meu amigo americano chegou de Nova York, veio conhecer aparelhagem do norte.

102. Aviões do Forró, “Pegadinha do Inglês” (2010) – eu vou cantar pra tu, girl beautiful, I love you, I love you: boy, te peguei na pegadinha do inglês, sou brasileira, não sou americana. 3-)

2011 Michel na Balada103. Michel Teló, “Humilde Residência” (2011) – é humilde, mas é de responsa: bem-vindos à nossa residência pra gente fazer Copa do Mundo, sras. & srs. gringos.

104. MC Sabrina, MC Suzy, Andrezinho Shock, Martinho, Hermes Filho e Mag, “Pré-Sal” (2010) – tu acha certo usufluir do que não é seu?, vocês tiveram suas riquezas, ninguém se meteu.

105. Leandro Lehart, “Do Iorubá ao Reino de Oyó” (2011) – samba-exaltação paulistano de avenida: os orixás, o calor, a nobreza, a tradição contrariada do ~amor~.

2012 Mixturada Brasileira - Vol. 01106. Carlinhos Brown Ítala Marques, “Seu Cabelo É Bom” (2012) – cabelo-exaltação: respeitem nossos cabelos, brancos!

107. MC Guime Emicida, “País do Futebol” (2013) – até gringo exaltou!

108. Caetano VelosoGal CostaGilberto Gil e Maria Bethânia, “O Seu Amor” (1976) – os Doces Bárbaros, e basta de “ame-o ou deixe-o”: o seu amor. ame-o. e deixe-o. livre. para ir. onde. quiser.

1976 Doces Bárbaros


#JornalistasLivres

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Muito prazer, nós somos os #JornalistasLivres!

O site FAROFAFÁ, a partir deste momento, está integrado em estado cívico a uma rede de jornalistas braSileiros, com S maiúsculo, para acompanhar de perto os dias movimentados que nos aguardam.

Dos atos legalistas de sexta-feira 13 de março ao teatro golpista de domingo 15 de março, estaremos em vigília para trazer a todos, sob a hashtag única e unificadora #JornalistasLivres, notícias do BraSil com S, coletadas por nossa rede formada por jovens jornalistas, repórteres multimídia, profissionais egressos da mídia velha e corrupta (nós também somos contra a corrupção!) e midialivristas em geral.

A hashtag nos une, mas não nos uniformiza. Somos jornalistaS livreS, no plural, porque somos muitos e estaremos, a partir de nossas próprias malocas virtuais (no nosso caso aqui, o FAROFAFÁ), descumprindo solenemente os manuais corruptos das redações do Partido da Imprensa Golpista (PIG) e as estratégias globalizadoras, estilo Big Brother, da Rede #GloboGolpista de Manipulação.

Faremos jornalismo à nossa maneira, à maneira ditada por nossas consciências, e não sob os preceitos cavados nos escombros de ditadura que hoje são nossos jornais, revistas, portais multinacionais e emissoras de TV e de rádio.

Faremos intervenções jornalística com Pátria (a braSileira, não a braZileira, menos ainda as estrangeiras) e sem patrão. Não podemos nos dizer plenamente #livres porque liberdade é uma luta de todos os humanos ao longo de todos os dias de cada vida. Lutamos para ser livres.

O modo como abordaremos os acontecimentos, sejam quais eles forem, será em tudo avesso aos vícios da mídia decadente e antibraSileira. Faremos

jornalismo livre

jornalismo cidadão

jornalismo humano, humanizado e humanizador (não somos máquinas, robôs, drones)

jornalismo contra (o preconceito, a intolerância, a ignorância, o atraso, o retrocesso), jornalismo a favor (da justiça, da inteligência, do progresso, da igualdade, do bem comum)

jornalismo de empatia (no lugar do antipático jornalismo de antipatia)

jornalismo crítico generoso (não jornalismo ~crítico~ de carrasco que pisa em terra supostamente arrasada)

jornalismo de compreensão (não ~jornalismo~ de intriga)

jornalismo sem baixaria, falta de educação, ofensa, agressão, violência (abaixo a barbárie!)

jornalismo de PAZ, contra o espúria indústria bélica armamentista da ~informação~

jornalismo adulto (para jovens de todas as idades)

jornalismo bem-humorado

jornalismo feliz

(……………. complete você mesma……………..)

FAROFAFÁ se apresenta neste momento para a luta, junto a representantes de sites e blogs progressistas, dos rebeldes ainda localizados dentro das velhas redações, de quantos coletivos e comunidades jornalísticas-e-cidadãs queiram e nos deem a honra de aderir ao carimbo #JornalistasLivres. Nossos afetos rejeitam a competição e se apaixonam pela colaboração.

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Nós, núcleo inaugurador da iniciativa convocada pela jornalista Laura Capriglione, estamos radicados na capital paulista e daqui emitiremos nossos sinais de fumaça. Mas convidamos jornalistas e cidadãos e jornalistas-cidadãs e não-jornalistas de todas as cidades de todos os estados do BraSil com S para se agruparem conosco, em quaisquer redes sociais e malocas virtuais, neste fabuloso guarda-chuva-arco-íris #JornalistasLivres.

O tamanho do guarda-chuva será o tamanho que você der a ele, seja no papel de compartilhar, replicar, reverberar ou produzir – ou em todos os papeis ao mesmo tempo. Porque, você sabe, não existe ninguém melhor do que VOCÊ para reportar ao mundo o que está acontecendo no seu estado, na sua cidade, no seu bairro, na sua roça, na sua maloca.

Agora é mão na massa!, sob a guarda dos exus protetores Santa Elis Regina, São Milton Nascimento, São Chico Buarque, Santa Nara Leão, Santa Miúcha, São MPB 4, Santa Rita Lee de Sampa, São João Gilberto e todos os orixás.

Sem Metrô na Virada

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Morte do marido da cantora Virginie e acidente com pais do guitarrista Alec deixaram apresentação impraticável, segundo baterista

A banda oitentista Metrô, uma das pioneiras do pop nacional e que estava havia 30 anos sem se apresentar ao vivo, deve anunciar nas próximas horas o cancelamento do seu show na Virada Cultural, que seria na madrugada de domingo, às 3 horas. “Vamos cancelar, não há condições. Talvez em julho, quem sabe”, disse há pouco o baterista Dany Roland (que ficou famoso ao estrelar o comercial “Bonita Camisa, Fernandinho” – ele era o Fernandinho).

Há dois motivos para o cancelamento. O primeiro foi a morte, no último dia 7, do diplomata francês Jean Michel Manent, que era marido da cantora da banda, Virginie. Ela vive na França com as filhas e declarou no Facebook que não tem condições emocionais de se apresentar. “E se meu canto ecoasse em outras vozes como as suas, eu estaria aí de alma e coração. Um beijo”, escreveu a cantora, no Facebook.
Os outros integrantes do grupo estavam ensaiando as músicas para apresentá-las de maneira instrumental, sem vocais, mas desistiram essa noite.

O outro motivo é que os pais do guitarrista Alec Haiat sofreram um acidente de carro essa semana e estão internados. O pai do músico está em estado grave.

Ensaio da banda Metrô - Foto: Divulgação

Ensaio da banda Metrô – Foto: Divulgação

O último show profissional da banda com a formação original fora no Gigantinho, em Porto Alegre, em 1985. “Um show muito triste. Lembro que estávamos de saco cheio de tudo. Não houve publicidade, era um dia de semana, não havia muita gente. Foi deprimente”, disse Dany. Tiveram um breve encontro no final do ano passado, mas não foi o núcleo original.

Virginie Adèle Lydie Boutaud-Manent foi uma musa dos anos 1980. Ex-top model, conheceu os colegas de música no Lycée Pasteur, onde estudavam francês. Em uma época estridente, em que todos buscavam ocupar lugares de líderes geracionais, ela cantava com a delicadeza de uma Nara Leão e tinha um ar nonchalance aristocrático.

A banda se desentendeu quando estava no auge. A cantora então casou com o diplomata Jean Michel Manent nos anos 1990 e abandonou a carreira. Moraram no Uruguai, em Moçambique, na Namíbia e em Madagascar, até que fixaram residência em Saint-Orens-de-Gameville, cidadezinha perto de Toulouse, na França. No último dia 7, ele morreu. Ela está devastada.

Depois do Metrô, os integrantes migraram para muitos campos artísticos, mas a música sempre foi um denominador comum. Dany Roland seguiu carreira no teatro e se mudou para o Rio, onde começou a trabalhar com a diretora Bia Lessa a partir de 1993. Fizeram juntos o filme “Crede Mi” (1996). Ele toca atualmente no grupo Os Ritmistas, como Domenico, Stephane Sanjuan e Zero Telles. Também produziu outros artistas como Chelpa Ferro, Leo Tomassini e Ivor Lancellotti.

Virginie parou por uns tempos com a música, mas voltou a colaborar com o compositor francês Philippe Kadosch (seu parceiro em “Il était une fois”, do disco Crime Perfeito).
Alec Haiat (guitarra) é sócio da Habro, importadora de áudio e instrumentos musicais profissionais. Segue compondo (tem parcerias com a cantora Céu) e foi autor da trilha do filme “O Invasor”, de Beto Brant. Zaviê Leblanc (baixo) é o chef do afamado bistrô La Tartine, instituição de São Paulo.

Yann Laouenan (teclados) tocou durante seis anos com o PR5 (de Paulo Ricardo) e vive atualmente em Jericoacoara.

Eles têm planos de gravar em breve material inédito (com produção de Kassin), fazer uma turnê e um registro da turnê em DVD. Também organizam, com a Sony, o lançamento de uma ediçao comemorativa do disco “Olhar”, que completa 30 anos(1985) esse ano. Será um album duplo: o original e outro extra com raridades, demos, remixes, além de uma edição em vinil.

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

Manoel Poladian, o avô do showbiz

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Manoel Poladian e o Andre Rieu de Papelão, sua mina de ouro, atrás dele: faro inato para os bons negócios - Foto: Jotabê Medeiros

Manoel Poladian e o Andre Rieu de Papelão, sua mina de ouro, atrás dele: faro inato para os bons negócios – Foto: Jotabê Medeiros

Desde 1958, o empresário criou festivais e promoveu shows com Vinicius de Moraes, Elis Regina e Wilson Pickett, descobriu Jorge Ben, ignorou Chico Buarque, foi abandonado por Daniela Mercury e esteve por trás de mais de 200 apresentações de Ray Conniff. E ele está longe de parar, conta Jotabê Medeiros

Em seu escritório na região da Avenida Berrini, em São Paulo, há em todas as janelas um pires com um punhado de sal grosso e cabeças de alho. Filho de um fotógrafo e uma dona de casa armênios que imigraram para o Brasil em meio à Segunda Guerra, o empresário Manoel Poladian não crê em bruxas, mas prudentemente as teme. Aos 72 anos, ele é um controverso pioneiro do showbiz nacional. Há quem o tenha como um padrinho, outros como um capo.

Poladian foi o empresário que inaugurou recordes de público no Brasil no início dos anos 1970, época em que realizou o musical “Uma Noite em Buenos Aires”, com Astor Piazzola, Mariano Mores, Jorge Sobral e os maiores nomes do tango. Foram 1,5 milhões de ingressos vendidos e 175 shows no Anhembi, em São Paulo.

Mas Poladian já era um veterano, àquela altura. Em 1958, com apenas 16 anos, conseguira emancipação da família e ganhava a vida como comediante na televisão em programas como “Grandes Atrações Pirani Philco”, na TV Tupi. Tinha uma trupe de piadistas batizada como Os Boçais. Achava-se engraçado e independente. Mas o pai deu-lhe uma surra de chinelo bumerangue, conta, para que largasse o vício artístico. “Nesse meio, ou você é puta ou é viado”, ralhava o velho Manuk.

Em 1961, já com 19 anos, para fugir ao confronto, ele realizara parcialmente o desejo do pai: entrara em Direito no Mackenzie. “Era o auge da bossa nova. Vinicius tinha dito que São Paulo era o túmulo do samba, e aquilo me deu uma ideia. Resolvi fazer um festival universitário”. Criou o Festival da Balança, cujo elenco, já na primeira edição no Teatro Mackenzie, era invejável: o próprio Vinicius, Baden Powell, Silvinha Teles, Luiz Bonfá, Tamba Trio, Dick Farney, Lúcio Alves. Três mil pessoas encheram um espaço onde só cabiam 1,5 mil. Havia gente pendurada na sacada, nos corredores, em pé.

O Festival da Balança e suas edições subseqüentes eram beneficentes e foram o embrião dos festivais de arena que vieram depois. O refrigerante Crush! bancava os cartazes, que ele colava pela cidade. “Esses caras acham que inventaram o marketing, mas quem inventou fui eu”. Com espírito de comerciante, Poladian virou celebridade na universidade. Seu amigo Taiguara compôs o jingle da candidatura dele ao centro acadêmico.

Ele então encorajou-se a fazer novas edições, mas em 1962 e 1963, havia um problema: com que elenco? “Foi um ano péssimo, porque a bossa nova estava estourando no exterior, tinha os famosos shows no Carnegie Hall e estava todo mundo viajando”, lembra. Silvinha Teles o salvou. “Tem um cara lá no Beco das Garrafas que é um assombro”, lhe disse. Foram atrás do sujeito: Jorge Ben. Foi assim que Jorge Benjor acabou fazendo seu primeiro show em São Paulo. “Tive que alugar um smoking pra ele lá na Rua Pamplona, porque não tinha nem terno”, conta Poladian.

Hebe Camargo foi a apresentadora daquele Festival da Balança. Tinha tanta gente querendo se apresentar que Poladian teve que dizer não para alguns postulantes. Dois deles: Lennie Dale e um jovem Chico Buarque de Hollanda. “Não deixei. Chico ficou na porta, não o deixei cantar porque já estava com quatro horas de show. Também, nem sabia quem era, sabia apenas que vinha da USP”, lembra o veterano.

Dali em diante, Poladian desenvolveu um know-how em promoção e realização de shows que o projetaria nesses 54 anos de carreira. Em 1965, fez um grande festival no Clube Pinheiros, com 8 mil espectadores, com Elis, Nara Leão, Jô Soares, Edu Lobo, Baden Powell, Vinicius. Sua fama provocou disputa. “Um dia, vieram me dizer que havia três baianos na porta do meu escritório. Mandei entrar. Eram Caetano, Gil e Bethânia”, conta. Passou a empresariá-los durante toda a década de 1970, realizava cerca de 80 a 100 shows por ano. “Apresentei Flora a Gil. Ela vendia ingressos para mim”, lembra.

Em 1972, foi contratado pela TV Globo e realizou shows de Mungo Jerry, Wilson Pickett, Demis Roussos, Santabarbara. Sua carreira internacionalizou-se. Em 1975, virou empresário do maestro Ray Conniff, que não fazia shows com outro empresário. Realizou mais de 200 shows de Conniff, em 15 temporadas. Fez shows de James Taylor no Parque Antarctica. Colocou 189 mil pessoas no Maracanã para ver Sting (a capacidade era de 100 mil). Hoje, é o empresário de outro fenômeno de público, Andre Rieu (35 shows lotados no Anhembi, com 8 mil pessoas em cada espetáculo).

A solidificação da indústria musical no país ampliou sua influência. Ficou 18 anos com Ney Matogrosso, capitaneou o sucesso do RPM (182 shows em 7 meses no ano de 1985, com 3 milhões de espectadores). Tem poucas mágoas no ramo. Daniela Mercury, que rompeu contrato com ele dois anos antes do final, é uma delas. “Nunca fale de um artista para outro, porque eles têm uma vaidade incrível”, afirma. Outra de suas boutades: “Os caras grandes reconhecem, os pequenos não”, diz. “Sempre paguei na segunda-feira. Nunca atrasei um dia, razão pela qual nunca me processaram”.

É possível dizer que Poladian nivelou o chão de terra batida no qual os empresários atuais colocaram asfalto. Ele continua em plena atividade, embora tenha delegado a dois de seus três filhos as funções de gestão dos negócios. Um dos dois netos, Gabriel, de 11 anos, ensaia seus primeiros passos no métier empresariando um clown.

Manoel Poladian segue o conselho do seu amigo, o chansonnier franco-armênio Charles Aznavour, 92 anos, que também empresaria (virá de novo no ano que vem): “Parar é a antecâmara da morte”, cita, adiantando que já pensa em escrever sua autobiografia. Vai ser um salseiro, porque Poladian não é um homem de meias palavras. “Aos 72 anos, posso falar o que quiser sem medo das conseqüências”, diz ele.

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

25 horas e ½ de Virada

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Um evento realizado em 28 ruas abertas, 8 bibliotecas municipais, 9 centros culturais, 7 teatros municipais, 11 casas de cultura, 16 Viradinhas voltadas para o público infantil, 10 CEUs (Centros Educacionais Unificados) e 5 palcos montados nos bairros das zonas sul, leste e norte. A Virada Cultural impacta pela variedade de atrações. É preciso ser mais de um para aproveitar ao máximo o que ela tem de bom. Foi o que FAROFAFÁ fez. Três repórteres realizaram uma cobertura ampla, geral e exaustiva, do começo da festa até o último acorde ecoando pela metrópole. O relato a seguir é um retrato da diversidade cultural em tempo de tensão e instabilidade política.

18h29 Julio Prestes

Nesse instante, o sul-matogrossense Ney Matogrosso já trocou três vezes de roupa. Ele subiu ao palco pontualmente às 18 horas, cantando “Rua da Passagem”, do pernambucano Lenine. Veste uma espécie de burca cintilante, peruca de carnaval ou chapéu de guerreiro medieval, ao gosto do(a) leitor(a). Não lhe faltam apetrechos no pescoço, nos braços e nas pernas. No show, dança, rebola, salta e hipnotiza. É Ney sendo Ney.

Ney Matogrosso
 
No espaço reservado às autoridades, a convidados e à imprensa, o prefeito Fernando Haddad e a primeira-dama Ana Estela Haddad prestigiam a abertura da Virada Cultural de 2016. Há três cadeirantes, muitos jornalistas e fotógrafos, jovens com pulseira rosa ou crachá. O público espremido vê tudo mais de longe. E é de lá que cartazes de “Temer Jamais” e coros de “Fora Temer” são avistados e ouvidos. Ney ignora essas manifestações.

No palco Júlio Prestes, tradicionalmente visto como o principal da Virada, Caroline Martins e Jefferson Matos interpretam na linguagem de sinais as canções. São um show à parte, porque dançam, fazem caretas e sorriem conforme a música. Onze atrações contarão com a tradução simultânea. Ex-secretário municipal de Cultura que se afastou para se recandidatar nas próximas eleições, o vereador Nabil Bonduki está ali, mas com a cabeça voltada para a política. A esta altura, ninguém sabe se a maratona cultural será tranquila. Haverá manifestações? “Que seja uma Virada da alegria, da cultura e de reflexão sobre o futuro do país, futuro que está comprometido pela interrupção de um mandato eleito democrativamente pelo povo”, afirma.

19h22 Rio Branco
Especializado em carnavalizar canções de Caetano Veloso, o bloco paulistano Tarado ni Você arrasta um pequeno cortejo pelo asfalto da avenida Rio Branco, em torno dos versos otimistas de “Os Mais Doces Bárbaros” (1976): “Com amor no coração/ preparamos a invasão/ cheios de felicidade entramos na cidade amada/ (…) alto astral, altas transas, lindas canções/ afoxés, astronaves, aves, cordões/ avançando através dos grossos portões/ nossos planos são muito bons”.

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O figurino dos foliões é ornamentado com galhos de árvores, que por vezes se misturam a folhas de papel com inscrições de “fora Temer” e “Temer jamais”, populares durante toda a Virada. A festa parece meio fora de lugar, ou, melhor dizendo, fora de hora. O carnaval não contagia, e o bloco querido da cidade desfila sem grandes transes catárticos, por entre versos que hoje soam melancólicos: “com a espada de Ogum/ e a bênção de Olorum/ como um raio de Iansã/ rasgamos a manhã vermelha/ tudo ainda é tal e qual/ e no entanto nada é igual/ nós cantamos de verdade/ e é sempre outra cidade velha”.

19h37 República

Os jovens Alberto Moraes e Dener Luiz Oliveira Santos, ambos de 20 anos, depois de atravessarem 15 estações de metrô, vindos de Itaquera, na zona leste, veem um público razoável e pouca concorrência ao redor na praça da República. Decidem montar seu negócio aqui mesmo, ao lado do público que assiste um tanto quanto barulhento à dupla de jazzistas formada pela norte-americana Dianne Reeves e o carioca Romero Lubambo. O mesmo show ocorreu quatro dias antes na casa de espetáculos Bourbon Street, em Moema, na zona sul paulistana. Só que lá o ingresso custava a partir de R$ 150. Na praça é de graça, como em todas as atrações da Virada Cultural.

Moraes e Santos não se importam com as pessoas conversando. Quanto mais alegres estiverem, maiores as chances de comprarem bebidas. A dupla da zona leste trouxe a mercadoria até o centro na esperança de ganhar cerca de R$ 150 por isopor vendido. A garrafa de vinho e de catuaba, dois hits de edições passadas do evento, custa R$ 10. Cervejas, R$ 10 e R$ 5 reais, e o minirrefrigerante, R$ 2. “Paramos primeiro no Anhangabaú, mas lá estava vazio”, afirma Moraes.

19h40 Arouche

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A caminhada de drag queens pelo largo do Arouche parece aquela cena em slow motion do filme As Panteras. Alice Nation, Dakota Monteiro, Pyetra, Slováquia, Gina Yamamoto: elas não estão ali a passeio. Penélope Nova é anunciada como “bicha que nasceu mulher por acidente”. Ela compõe o júri com a travesti Luiza Marilac e a drag Fátima Fastfood. Penélope tira de letra as roubadas que lhe impõem. “Se fosse rola, vocês não empurrariam para mim!”. Gina Yamamoto agita os braços freneticamente, como Elis-cóptero cantando “Sá Marina”. Pyetra brigou com a mãe, está com a maquiagem borrada de chorar. Mas ela termina vencendo o concurso de drags e levando um cheque de R$ 1 mil para casa.

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O clima é de pecados da carne. Na Churrascaria Prazeres do Sul, atrás do palco das drags, justamente no momento de maior ferveção, três freirinhas tomam três garrafas de 600 ml de cerveja Original e comem picanha. Dia de folga no retiro certamente não é dia para um colchão duro ordinário e tubaína caramelizada.

20h15 Av São João

Espécie de Esperanza Spalding da santeria, a cantora cubana Yusa encara a avenida reservada às mulheres cantoras com dois baixos elétricos e muita presença de espírito. “Esta avenida tem história”, diz. Ela tocou baixo no show de Lenine InCité, em Paris, a convite do pernambucano. Mas Yusa tem público rarefeito neste início de noite – seu coté de trova cubana com Jaco Pastorius concorre com todos os pesos pesados da praça Júlio Prestes, do Teatro Municipal e da praça da República. Não há quase nenhuma testemunha para seu conceito orgulhoso, black music afrocubana. A música é áspera, difícil para plateias heterogêneas, mas os malucos da hora não querem saber, é como se estivessem ouvindo Flea, dos Red Hot Chili Peppers. São poucos, mas dançam como uma tribo inteira de Sioux.

20h16 Av Rio Branco

No território dos roqueiros, não faltam jaquetas de couro, camisetas pretas ou brancas e jeans surrados. O analista de telecomunicações Ricardo Alexandre, de 40 anos, fez questão de mostrar a estampa das costas de sua jaqueta: Motoclube Trem das Onze, do Jaçanã. Para garantir um lugar na fila do gargarejo, ele chegou às 17 horas. Está impaciente: “É, até quando esperar para ver a banda da minha adolescência?”. O show começa com 16 minutos de atraso, mas Alexandre tem de aguardar outros 52 minutos até que a Plebe Rude toque a clássica canção “Até Quando Esperar” (1985). Neste ano, a banda de Brasília, que completa 35 anos, sobe ao palco com Clemente, da banda punk paulistana Inocentes, nas vozes e guitarra, Phillipe Seabra, também vozes e guiterra, André X no baixo e Marcelo Capucci na bateria. Surgida numa época em que a polícia batia em estudantes e a censura ainda perseguia os músicos, a Plebe Rude evita falar diretamente sobre a política. Estamos em 2016.

21h04 Júlio Prestes
“Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer”, declama a maranhense Alcione durante breve discurso, após abrir a apresentação no palco principal da Virada com sua versão em vozeirão para o clássico de Nelson Cavaquinho “Juízo Final” (1973). Enquanto ela discursa, o “fora Temer” se alastra pela plateia sem que a sambista pronuncie o nome do presidente interino, menos ainda o de Dilma Rousseff. Embora dilmista notória, Alcione se limita a criticar a extinção (já revogada) do Ministério da Cultura (MinC) e a ausência de mulheres e negros na equipe de primeiro escalão do governo provisório, que a artista parece já dar como definitivo. Sem contar com a amplificação do microfone de Alcione, o vendedor de cerveja também se manifesta.

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21h30 Boulevard São João

Enquanto a próxima atração não chega, no bulevar da avenida São João, a poucos metros da famosa esquina com a Ipiranga, o mágico Volckane entretém o público. Realiza aqueles truques de cartas, barbantes, elásticos e bolinhas que todos conhecem e todos se deixam iludir. Metade dos 50 anos de Robson Palazini, como está no RG de Volckane, foi dedicado ao ofício da mágica. Está feliz por circular entre a multidão. Seu desafio é levar a banqueta de madeira e a maleta até uma roda de pessoas e, em questão de segundos, atrair a atenção até mesmo dos mais incrédulos. Ele foi um dos 20 mágicos contratados para a Virada e receberá R$ 3 mil – quase três vezes mais do que faria numa festa infantil – para realizar performances durante duas horas. “Esse tipo de arte close-up, de proximidade, é muito desafiador. O público é muito diferente, mas também está sendo bastante receptivo.”

22h05 Av São João

No palco 100% devotado às mulheres da avenida São João, a funkeira carioca Valesca Popozuda faz a declaração de princípios sobre a quem pertence a programação gratuita e popular do evento: “Virada Cultural, baile de favela!”. O “jamais Temer” (ou “jamais temer”?) se projeta no paredão de um edifício e ecoa modestamente entre a plateia ultralotada, mas mais preocupada em dançar e se divertir que em protestar.

22h05 Boulevard São João
A performance de dança do grupo carioca #Passinho contagia a todos, exceto o cachorro Negrão, que late com insistência para oito integrantes. Alguns estão descalços e outros sem camiseta. Como se estivessem em suas próprias comunidades. MC Leone, uma espécie de mestre de cerimônias, tenta descontrair: “Temos até um convidado. Isso é fome de dançar”. Os donos do animal tentam repreendê-lo. Ele recua, para logo voltar à ação. Ao se aproximar da plateia, um dos dançarinos é atacado por Negrão. É mordido na perna, sem gravidade. Ele se aquieta. Mas, de repente, volta a morder de novo, agora na bermuda do mesmo dançarino. Alguém da produção tenta “comprar” um animal com um sanduíche. Os donos de Negrão desistem de assistir ao show e vão embora. A batalha do passinho, de um dançarino contra outro, pode recomeçar, sem mordidas.

 

22h15 MBoi Mirim

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“Falador passa mal, rapaz!” Max B.O. domina a plateia com seu grupo Partido B.O. e usando o bordão antigo dos Originais do Samba, mas está estourando o tempo – por conta de problemas técnicos, o show da banda pernambucana Nação Zumbi já vai atrasar uma hora. E os roadies estão no meio da rua com o equipamento, nem passaram o som ainda e já estão preocupados. “Aqui só pode tocar até as 23 hora”, murmura o barbudinho que cuida das guitarras. Numa confluência de ruas do M’Boi Mirim, na periferia sul de São Paulo, o palco descentralizado está cercado por uma barraca de yakissoba, uma mesa de quentão e uma notável guarnição policial – talvez o mais policiado palco das periferias.

22h28 barão de itapetininga

Há um ringue, e não um octógono de UFC, o esporte-pancadaria que virou moda no mundo todo, onde acontece hoje um tipo diferente de batalha. Duplas de atores comediantes improvisam no “Quintal’s Fun Championship”, diante de uma plateia que decide, na hora, qual delas deve prosseguir na disputa. Os temas são anunciados na hora pelo apresentador. Duas atrizes fantasiadas de paquitas são desafiadas a interpretar os papéis de patroa e empregada. O árbitro interrompe de tempos em tempos a “luta” e pede que elas revelem aquilo que não se diz, mas no fundo se pensa. É um besteirol, e é claro que a luta de classes acaba em sexo, com a empregada fazendo o papel de quem transa com o marido de quem lhe paga o salário. A plateia se diverte.

Batalha de improvisão
 

23h Ramos de Azevedo

A mineira Wanderléa inicia a apresentação que retoma o disco Feito Gente (1975), o primeiro de seus 16 álbuns que foi gravado ao vivo. É a segunda vez que uma das primeiras estrelas do rock brasileiro toca no Theatro Municipal – há dois anos, executou a íntegra do disco Maravilhosa (1972). Está elegante, e sua voz permanece tão precisa quanto há 40 anos. Fica à vontade com a plateia, que devolve com gritos de “divina”, “musa”, “maravilhosa” e “casa comigo”. Mas o disco marcou uma fase depressiva da carreira da artista, e o ar intimista marca a apresentação. Em “Segredo”, de Luiz Melodia, ela se entrega e se joga no chão, após os versos “eu tenho um recado/ um ódio interno marcado/ guardado/ fincado, pregado, lacrado”. Todos aplaudem de pé.

0h15 Dom Jose Gaspar
O meio quarteirão entre as ruas Barão de Itapetininga e 24 de Maio está lotado de jovens que dançam, conversam, bebem e fumam. Poderia ser um palco da Virada, mas é mesmo a discotecagem do DJ Junior Black. Ele se espreme na já apertada entrada de um cubículo que é o Rei dos Doces, ponto comercial de Wagner dos Santos, de 40 anos. Há cinco anos, em todas as sextas-feiras das 19 às 23 horas, uma multidão é atraída para esse calçadão no centro para curtir R&B, rap, swag e black music. “Este é o meu público, não é o da Virada”, orgulha-se Santos. Começa a tocar “Rap É Compromisso” (2001), de Sabotage, e a frase do comerciante passa a fazer todo sentido.

DJ Junior Black no Rei dos Doces
 

1h40 Rio Branco
Começa a ecoar um “Fora Temer” mais forte, provocado por Tatá Aeroplano, o músico paulista que está à frente da homenagem ao gaúcho Júpiter Maçã no palco roqueiro da Virada. O grito já havia sido ouvido no mesmo show com reações espontâneas da plateia ou poucas manifestações dos artistas que subiram ao palco, como a fluminense Bárbara Eugenia. Ela grita: “Fora Temer e Júpiter Maçã para sempre!”. Tatá parece querer mais reações do público, dos artistas, do Brasil. A reação não dura muito tempo. O jeito é tocar “Miss Lexotan 6 mg Garota” (1996), um clássico de Flávio Basso, fundador das bandas TNT e Cascavelletes e influenciador de várias gerações de roqueiros. Júpiter Maçã, como Basso era conhecido, morreu em dezembro do ano passado, aos 47 anos.

1h55 São João

Desde o início da Virada, já são 800 sanduíches vendidos n’A Verdadeira Casa da Mortadela. Silveira, batizado como Antonio Cavalcanti Vieira, morador do Grajaú, na periferia sul da capital, é quem está cuidando da lanchonete para Irineu Stalbo, um italiano de 86 anos que criou um dos clássicos de São Paulo em 1977. O lugar é discreto, corre-se o risco de passar desapercebido diante dele. Lá se mantém a tradição da Itália de tocar o sino sempre que alguém dá uma gorjeta. Até o fim da Virada, a meta é bater os 1.500 sanduíches, o triplo do que se vende em dias normais. Um casal que visivelmente não frequenta o centro, tampouco a cozinha, se espanta quando um dos atendentes usa uma pedra de amolar facas. Eles comem, pagam, e a campainha não toca.

2h42 avenida São João

Com 42 minutos de atraso, a cantora e compositora paulistana Céu sobe ao palco quando a plateia já revela irritação por esperar tanto tempo. Ouve-se na fila do gargarejo gritos de “ridícula” e “tá se achando, é?”. Mas ela logo começa a cativar o público indócil, já desde a primeira música, “Rapsódia Brasilis” (2016).

No mesmo palco 100% ocupado por mulheres em que Valesca brilhou horas atrás, a paulistana Céu grita um “viva Elza Soares!” toda vestida de vermelho. E não se furta a falar da política, mais exatamente às 3 horas e 4 minutos da madrugada de domingo: “Devolveram o ministério, falta devolver o governo. Fora Temer”. E não dedica a próxima música, “Amor Pixelado” (2016), ao paulista de Tietê Michel Temer: “Saiba, meu amor, cuidarei de nós/ mesmo quando eu for em busca de mim/ em busca do que faz você me amar”.

3h10 Arouche

“Eu não confio em você, sua bicha invejosa!”, repete em pique de rock’n’roll a banda Verónica Decide Morrer, uma atualização cearense dos históricos e andróginos New York Dolls. Vestido(a) de vermelho, o(a) vocalista dedica a apresentação “a todas as verónicas que são espancadas, humilhadas, rejeitadas, como eu e você”.

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3h19 Itapetininga

A vida cotidiana penetra a Virada, e vice-versa. Conforme a programação oficial se desacelera na alta madrugada, os notívagos que querem mais diversão se entrosam com a vida diária no centro da cidade velha. O bar Terraço da Barão vive momentos de glória, ao som de um forró moderno na voz de Wesley Safadão, que sai de potentes caixas acústicas e se alastra para os pés dos casais (de todos os sexos) que dançam entre as mesas postas no calçadão. Do lado de dentro do balcão, o trabalhador do bar se faz mídia e registra o momento em vídeo pelo celular, com um sorriso largo no rosto.

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3h30 Anhangabaú

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Um palco foi montado embaixo do viaduto do Chá para dar lugar ao teatro de musicais estilo Broadway abrasileirada, com versões “pocket” de espetáculos sobre Gilberto GilElis ReginaChorão e outros. A alta madrugada é reservada ao vaudeville andrógino dos Dzi Croquettes, grupo histórico dos anos 1970 homenageado pelo musical de mesmo nome. O grupo de homens musculosos e depilados seminus contrasta com a magreza peluda tipo Ney Matogrosso dos Croquettes originais, assim como a locução contrasta sem querer o momento atual de ruptura democrática com o idílio romantizado em torno do grupo setentista que desafiava normas de comportamento (“era tempo de ditadura”, “eles mandaram a ditadura para a puta que pariu”).

 
Interpretada originalmente por Elis Regina, a canção “Dois pra Lá, Dois pra Cá” (1974), de João Bosco Aldir Blanc, soa estranhamente comportada apesar do vestidão do performer. O discurso investe no discurso antipolítico tipo “fora todos”, demonizador da política, mas suficiente para fazer erguer na plateia um galho da árvore “fora Temer” que veio do cortejo do Tarado ni Você. Um dos atores ousa uma breve extrapolação do protesto genérico e indistinto, quando sugere a Marco Feliciano, Michel Temer e Eduardo Cunha que “vão dar meia hora de cu”. A plateia se divide entre os que aplaudem, os que tateiam mais um “fora Temer” e os que, cansados de guerra, dormem nas cadeiras de plástico do teatro ao ar livre.

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3h45 Cidade Tiradentes

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Na Cidade Tiradentes, extremidade leste da capital, o rapper paulistano da sul  b Brown termina o show e seus seguranças fazem um corredor polonês para ele voltar ao camarim. Brown fura o bloqueio dos seguranças e vai de encontro à grade onde os fãs berram feito loucos. Deixa-se abraçar por eles, ser agarrado, faz selfies, sorri com dentes que parecem ter sido recentemente embranquecidos com laser. Mano Brown está em casa. Sua mulher e empresária, a atenta Eliane Dias, vai pinçando meninos e meninas da plateia e elevando até o palco para dançar com o rapper.

Apesar da alegria, de um show abertamente de entretenimento, enxertado com disco music e soul romântica, ele mostra como sempre que não veio ao mundo a passeio: “Todo mundo brabo. No trânsito, todo mundo general. Não tem humildade, falta sensibilidade. Tanta brabeza não impediu que a gente tomasse um golpe (…). Nossa mente fechou, se alienou. Acredito na nossa juventude, na sua capacidade. Mas por enquanto vocês vão conviver com um governo de ladrões. Tomamos um golpe, e seu voto não valeu nada”. Parecia até que já tinha ouvido os grampos do ministro interino Romero Jucá que seriam divulgados na segunda-feira pós-Virada.

4h12 Paissandu

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Um dos oásis na madrugada agressiva é o chão do largo do Paissandu, terra simbólica da cultura afrodescendente paulistana, devotado nestas 24 horas às chamadas culturas tradicionais, populares, negras. Uma plateia de paulistanos e não paulistanos, de forasteiros e descendentes de outros paulistas e brasileiros, parece confirmar que, dificuldades à parte, a Virada é para virar, amanhecer e continuar. “Abre a roda, por favor”, pede a solista ao público ávido que parecer querer ser a própria roda viva.

 

4h45 Rio Branco

No trajeto dos cortejos, é a vez da “Parada Carnavalizada”, que aglutina os clubbers da festa Mel, o músico eletrônico paraense Jaloo e as comissões de frente da Mocidade Alegre e da Acadêmicos do Tucuruvi. Em macacão sintético moderno, Jaloo evolui dentro da corda que envolve o trio elétrico, ao lado das comissões de frente fantasiadas. Do lado de cá da corda, bem colados aos passistas fantasiados, dois homens assistem abraçados ao semicarnaval quase animado. Um deles, de jaqueta do Black Sabbath, conduz com carinho o outro, que é cego, no compasso do som gravado das percussões de escola de samba.

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4h59 ipiranga com são joão
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O folião dark confabula com dois amigos na esquina “onde cruza a Ipiranga e a avenida São João”, fantasiado como desses personagens de filme hollywoodiano de terror. É a morte? “É uma morte meio gay”, desvenda um dos colegas.

5h08 São João
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Misto de rapper e funkeira vinda da zona leste paulistana, a “rainha do dancehall brasileiro” Lei Di Dai se apresenta em nome das minorias, para uma plateia reduzidíssima em que se destacam as travestis, as transexuais, as “verónicas espancadas, humilhadas, rejeitadas”.

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Simultânea ao show de Lei Di Dai, a manutenção passa pesada, empurrando com um jato d’água montanhas de lixo do asfalto da São João e das ruas perpendiculares para as sarjetas. O sinal está vermelho e quem chegar para o turno de diversão da manhã não perceberá nem um centésimo das toneladas de lixo que a alegria da festa já produziu.

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5h46 Arouche

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Vestido de militar tipo Sgt. Pepper (mas em tons de azul), o baiano Luiz Caldas explica para o público iconoclasta do Arouche que perdeu os preconceitos que tinha entre os 7 e os 16 anos de idade, período de iniciação profissional, quando tocava todos os estilos musicais e esmerilhava a técnica guitarreira. Sua apresentação reflete a mistura, com versões em inglês embromation para “Three Little Birds” (1977), do jamaicano Bob Marley, e “Sultans of Swing” (1978), dos britânicos Dire Straits, mais “Frevo Mulher” (1979), do paraibano Zé Ramalho, citação saudosa ao mestre pernambucano Luiz Gonzaga e muita axé music baiana. A plateia é reduzida, animada e não dá brecha para o “fora Temer”. Às 6h15, ao som de “sene sené sené, sené Senegal”, já é quase manhã, a Virada começa a desescurecer: virou!

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7h10 República

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O rapper vindo da zona norte paulistana Rashid dá boa noite e imediatamente se corrige: está acostumado aos shows noturnos, o correto é dizer bom dia. Pergunta quem aqui sonha com uma média no café da manhã, canta o demitido que não tem coragem de contar à família da demissão, elogia Cristo. “Não descendo de escravos/ descendo de reis que foram escravizados”, proclama, do topo da manhã em que já brilha o sol que Alcione chamou na noite baixa do sábado chuvoso. O “Temer jamais” resiste nos sulfites pregados em diversos pontos do palco.

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7h45 Paissandu

 
As culturas tradicionais amanhecem firmes e fortes ao lado da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos do Rosário, em frente à Galeria do Rock. É a vez da Companhia de Moçambique Unidos de São Benedito, de Taubaté, interior paulista, formada por homens e mulheres, jovens e velhos, todo(a)s preto(a)s.

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9h29 São João

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Acompanhada por plateia reduzidíssima e calorosíssima e pelo mestre conterrâneo de guitarradas Manoel Cordeiro, a paraense Fafá de Belém explode a manhã azul ao som de música chamada “brega”, o “É o Amor” (1991) dos goianos Zezé di Camargo & Luciano e a “Nuvem de Lágrimas” (1990) dos paranaenses Chitãozinho & Xororó. O tempo passa, o tempo voa, e só desse modo transversal, colateral e intimidado a música sertaneja (tipicamente paulista apesar dos preconceitos paulistanos) consegue adentrar a Virada Cultural, de resto refratária à caipirez e aos nossos próprios sertões.

 

10h05 República

 
Com repertório ainda curto, mas estrutura já ultraprofissional (e dançarinos exímios), o incandescente MC Bin Laden eletriza a plateia da manhã na praça da República, ao som, principalmente, de “Tá Tranquilo, Tá Favorável”. O segurança que protege o palco e o artista de seus próprios fãs tapa os ouvidos, em desgosto aparente. Quando Bin Laden interpreta o clássico “Rap das Armas”, o segurança olha para ele de soslaio, aparentando desgosto ainda maior.

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Como aconteceu na apresentação de Rashid, Jesus Cristo toma a frente de Michel Temer na ligeireza do discurso do dono do microfone. Dilma Rousseff, que não é Michel nem Jesus (nem homem), permanece esquecida e escanteada, seja pelo artista, seja pela plateia. Tá tranquilo, tá favorável.

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10h30 Ibirapuera

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Estamos longe do centro, mas também das periferias, no parque Ibirapuera, na parte mais rica da zona sul paulistana. Um menino que detesta Mozart acha uma violência levá-lo a um lugar no qual o som da Orquestra da Baviera espalha “As Bodas de Fígaro” por todo canto. É uma apresentação nos fundos do Auditório Ibirapuera, que engaja os pais e libera os moleques. Mas há as compensações: oficinas para fazer aeromodelos, até com o motorzinho para fazê-lo funcionar; escorregadores infláveis de 4 metros de altura; esculturas com bexigas; oficinas de tatuagens temporárias e aulas para as crianças brincarem com tintas naturais; ioiôs e bambolês abandonados no gramado.

Para comer, nada das guloseimas tradicionais entupidas de açúcar. Há uma preocupação com as comidas. O takoyaki (bolinho de polvo grelhado) tem uma filinha enfrentável; o café com calma na bike food demora, mas compensa. Quem levou cachorro, mesmo os mansinhos, levou com uma focinheira – afinal, tem horas que é o menino que morde o cachorro.

13h25 Anhangabaú
“A TV é uma fábrica de produzir doidos, como disse Stanislaw Ponte Preta”, declama a atriz Cláudia Raia, no teatro improvisado debaixo do viaduto do Chá. A esta altura do espetáculo Raia 30 – O Musical, dirigido por José Possi Neto, a atriz global, que também é bailarina, cantora e pioneira na produção de musicais no Brasil, faz uma retrospectiva de sua carreira. O cenário perde a força diante de um palco aberto e fortemente iluminado pela luz do dia. Mas a troca de figurinos ocorre de forma tão perfeita que o público se impressiona, num ritmo de três mudanças de roupas a cada cinco minutos.

13h51 Anhangabaú

Monica Estela no espetáculo Everybody
Na chamada Ocupação Anhangabaú, o Snuff Puppets, grupo teatral australiano que veio pela primeira vez ao país, encerra sua apresentação de Everybody, e as pessoas se aproximam do elenco. A professora do ensino básico Maria Rodrigues de Carvalho Perroti, de 62 anos, é uma delas. A caminho de ir para casa, depois de assistir ao show da paraibana Elba Ramalho, ela decidiu parar para ver a performance. Não satisfeita, encontra a atriz Mônica Estela e faz uma pergunta sobre um bebê que fuma e o conceito geral do espetáculo.

Atenciosamente, a atriz de 29 anos explica que o bebê vira um adulto, de terno e gravata, fuma cigarros, anda com pressa, cria brigas. E que a peça fala do nascimento até a morte e os processos internos e externos pelos quais passam as pessoas. Mônica traduziu as falas na véspera da apresentação, que faz parte do Festival Australia Now, de ampla repercussão em outros países. É a primeira Virada dela, que por pouco não pegou uma de suas criações artísticas e saiu pelas ruas do centro para apresentar aos paulistanos seu personagem Janus, ou Januário. É um boneco feito de termoplástico, um material novo, que permite que seja confeccionado com grande riqueza de detalhes. Aprendeu a técnica com a cultuada figurinista, bonequeira e artista plástica russa Natacha Belova. Janus tem 1,77 de altura, exatamente como a atriz.

14h29 Praça Dom José Gaspar
Vinte saraus se revezam em um único palco da Virada. No ano passado, eram dois palcos. “Cortaram o orçamento”, explica Carlos Moura, editor do jornal Centro em Foco, uma publicação gratuita com tiragem de mais de 20 mil exemplares. Toda sexta-feira do mês, ele e um grupo de amigos e interessados, como advogados, escritores, publicitários e músicos, se reúnem no segundo andar do restaurante Cama e Café, na rua Roberto Simonsen, no centro.

15h25 Júlio Prestes

O rapper Criolo, do Grajaú, periferia sul da capital, veste duas camisetas em um dos shows mais concorridos da Virada. A primeira delas tem a inscrição “Democracia 1982” (em alusão ao Corinthians) e a outra, “Ainda Há Tempo”, nome de seu primeiro álbum, de 2006, recém-relançado. Ele não cita políticos, mas o produtor musical paulistano Daniel Ganjaman bolou uma forma de chamar a atenção do público para o momento atual. Quando viu, Criolo apoiou na hora a iniciativa. No imenso telão atrás do palco, são projetados os dizeres “Temer Jamais” em diversas cores, durante poucos segundos. A plateia vai ao delírio e começa a gritar “Fora Temer”.

Na área VIP, o ex-senador Eduardo Suplicy e ex-secretário municipal de Direitos Humanos entra na onda. De espírito jovem, está vestido com uma camiseta vermelha da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco, que ganhou do jornalista Miguel Icassati no meio da Virada. Veste ainda uma bermuda, que parece emprestada dos filhos. Também nesse local está o pernambucano Nelson Triunfo, considerado um dos pais do rap nacional e reverenciado por MC Dan Dan, de Diadema, na Grande São Paulo, que é companheiro de palco de Criolo e mais aguerrido para provocar o público a se manifestar.

Criolo e MC Dan Dan
Num show que ganha os ares de um culto pós-moderno, Criolo prefere provocar a consciência dos espectadores sobre temas como amor, violência, cidadania e justiça social. Quando um grupo de cinco estudantes invade a área VIP com uma faixa de protesto e é controlado de forma enérgica pelos seguranças, o rapper pede para não usarem de violência e provoca: “Nas quebrada que a gente veio, só de tá vivo já é um protesto, tá ligado?”.

15h15 Arouche
A área de imprensa do show da banda oitentista Metrô é praticamente uma embaixada informal da França. A paulistana Virginie, a vocalista, festeja o show que a precedeu, do forrozeiro paraibano Genival Lacerda. “Ter entrado depois de Genival foi a cerreja do bolo”, ela diz, com um sotaque francês que não havia em 1988. Sua voz continua pequena e linda, mas ela já não alcança certas notas. “Preciso de ajuda, gente!”, conclama, ao cantar “Olhar” (1985).

O Metrô nos deu muitas coisas além da batida new wave com defeito de fabricação: nos deu o La Tartine e o jeito blasé do 16º arrondissement. Virginie Adèle Lydie Boutaud-Manent foi uma das musas seminais dos anos 1980. Ex-top model, conheceu os colegas de música no Lycée Pasteur, onde estudavam francês. Em uma época estridente, em que todos buscavam ocupar lugares de líderes geracionais, ela cantava com a delicadeza de uma Nara Leão e tinha um ar nonchalance aristocrático.

Nesse retorno, após 30 anos sem se apresentarem ao vivo para plateia tão expressiva, eles estão à vontade. Não têm mais a obrigação de fazer história. Misturam a seus hits imemoriais coisas como a folclórica “Frères Jacques”; “I Feel Love” (1977), da norte-americana Donna Summer; e “Me Dê Motivo” (1983), do carioca Tim Maia, sem nem ficarem vermelhos. Sândalo de Dândi.

15h35 Praça Julio Mesquita

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O cabelo é tão branco que já ficou com aquele tom amarelado dos castigos do sol e da rua. O velho olha a rua através da grade, com o olhar voltado para dentro de si mesmo. Ele é um dos 210 abrigados provisórios do Centro Especial de Acolhida de Idosos, um prédio histórico a igual distância dos palcos Arouche e Palco São João. A qualquer momento terá que deixar sua casa provisória. Anda arrastando uma perna e não quer conversa. “Não gosto de música. Não me lembro do que eu gostava antes de não gostar. Não vi nada dessa festa. Por que você não me deixa descansar?”.

17h Parelheiros
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O paulistano da zona norte Emicida encomendou um pastel de cima do palco. Brinca que o pastel não chegou. Os jovens fumam narguilé em rodas. As barraquinhas da praça em frente ao Palco Parelheiros, na periferia sul da capital, vendem bolo de cenoura, yakissoba, espetinho de churrasco, vinho quente. E dão um clima de quermesse ao show do rapper, que estende uma camiseta na caixa de retorno à sua frente: “Temer Jamais”.

O público se esgoela quando ele canta “Hoje Cedo” (2013), seu dueto com a baiana Pitty. Mas aí ele contrabandeia versos (“alegria era o que faltava em mim/ uma esperança vaga/ que eu já encontrei”) e fica melhor ainda. Tem menino de 11 anos berrando versos do carioca Cartola e se você já viu cena mais bonita conte pra gente.

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A Virada, que amanheceu há mais de 12 horas, anoitece em Parelheiros. De todos os rolês pela periferia, Parelheiros é o mais alegre e colorido – mais alto astral, inclusive, que grande parte dos shows da Virada no centro. Cidade Tiradentes é cinza e sombria. M’Boi Mirim é recatada e sincera (“Hey, DJ, vai tomar no cu!”, berrava o público por conta da insistência do programador em tocar sempre a mesma música).

18h18 Júlio Prestes

Cabe ao Nação Zumbi, grupo pernambucano herdeiro do manguebit, o show de encerramento do palco principal da Virada Cultural. Também cabe a eles um dos posicionamentos mais críticos sobre a situação política que o Brasil atravessa. “Do cinismo ao sinistro, estamos passando por uma fase de sinistro. E isso depende de nós. Não nos calemos. Quando se cala, o cidadão é apagado. Mas nós não estamos apagados, estamos acesos. Fora Temer. Temer Jamais”, diz Jorge du Peixe, logo seguido pela plateia aos gritos de “Fora Temer”.

O show é marcado pela sucessão de hits dos discos da banda. O vocalista, que substituiu o fundador Chico Science, morto em 1997, lembra dos 20 anos do álbum Afrociberdelia (1996), e não é preciso muito para mostrar a atualidade das composições. Apesar de tudo que aconteceu de lá para cá e da recolocação do país perante o mundo, o Brasil da Virada Cultural 2016 ameaça voltar a ser a reprodução de “Manguetown”, de exatos 20 anos atrás: “Estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm casas e eu não tenho asas/ mas estou aqui em minha casa/ onde os urubus têm asas/ vou pintando, segurando as paredes no mangue do meu quintal.” O show se encerra às 19h27. O recado foi dado, no palco e, principalmente, nas plateias.

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Elza Soares contra os homens

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Os versos são de Vinicius de Moraes, o poetinha ex-diplomata que nunca chegou a ser o mais progressista dos brasileiros. A música é de Baden Powell, que no final da vida extirpou a palavra “saravá” de suas canções e substituiu os antigos cantos de candomblé pela religião evangélica. Transtornado por Elza Soares, o “Canto de Ossanha” (1966) de Baden e Vinicius constituiu-se, para boas entendedoras, no grande momento político da cerimônia planetária de abertura das tristes Olimpíadas do Rio de Janeiro.

Foi um recado explícito, cortante e 100% feminino ao “macho” traidor Michel Temer, a grande estrela negativa da noite universal. “Coitado do homem que cai no canto de Ossanha traidor“, cantou Elza em meio ao espetáculo de despolitização transnacional, com ênfase aberta, indignada, às sílabas do (des)qualificativo traidor. Obra de gênio, de gênia.

O homem que diz “sou” não é. Porque quem é mesmo é “não sou”.

O homem que diz “tô” não tá. Porque ninguém tá quando quer.

Para filtrar tais versos e trazê-los a 2016 é necessário apenas ser boa entendedora, bom entendedor. É necessário apenas não ser robô.

Brasileiras devotas da democracia assistimos atarantadas à escalada de repressão testada nas Olimpíadas do Brasil. Tropas de choque avançam sobre o Rio de Janeiro e São Paulo para calar o “fora Temer“. A lei dos homens olímpicos faz de tudo para escorraçar a política das arenas esportivas. Policiais militares transgridem ínfimas leis para oprimir professoras que desejam se manifestar em arena contra o golpe de estado em curso.

A cerimônia transcorre apática, dirigida à política do anódino, obediente à blitzkrieg endoidecida para preservar a “integridade” do golpe. Fracos diante da máquina de moer sonhos, esportistas e artistas se movem como o grande rebanho big brother aboiado pela Rede Globo aqui no país tropical abençoado pelo golpe. Até que Elza adentra a arena, já bastante machucada pelo tempo e pela violência cotidiana disparada preferencialmente contra as carnes mais baratas do mercado branco.

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Sentada impávida rodeada por três jovens mulheres de carne negra e cabelos black power, Elza não faz nada mais, nada menos que ressuscitar o “Canto de Ossanha” de 1966, ano 2 da ditadura civil-militar de 1964.

Irmã preta da “Maria Moita” (1964) de Nara Leão (e Vinicius e Carlos Lyra), Elza devolve a voz à voz feminina que foi suprimida da “grande” “festa” dos “homens” “atléticos”: Dilma Rousseff.

“Amigo sinhô, saravá, Xangô me mandou lhe dizer/ se é canto de Ossanha não vá, que muito vai se arrepender/ pergunte pro seu Orixá, o amor só é bom se doer”, avisa Elza, a mandinga feminina resplandescente contra as ditaduras masculinas onde tudo o mais ensaia se calar.

O preço da traição será enorme para todos os pactuares do corte, adverte a mandingueira soberana. O semblante de Temer, sombrio por inúmeros motivos, é a prova viva de que a melhor de todas as cartas abertas chegou a seu destinatário. Nem precisávamos mais das vaias.

 

(p.s.: Todas nós, brasileiras que precisamos de democracia, temos um grito uníssono de celebração para acalentar o triste início dos Jogos da Exclusão e da Vergonha: viva Elza Soares!)

 

O novo Chico

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Os chicos Buarque e Brown - foto Leo Aversa

Os chicos Buarque e Brown – foto Leo Aversa

Desde que surgiu, antecipada, a cantiga “Tua Cantiga” tornou-se famosa no sentido polêmico do termo, graças aos versos adúlteros “largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir”. Antes mesmo de conhecermos o conteúdo todo do novo álbum Caravanas, o autor Chico Buarque foi fustigado no mundo virtual com adjetivos como “ultrapassado” e “antiquado”.

Não é novidade, já que é assim que nossa sociedade de juventude costuma tratar senhores que, como ele, somam 73 anos de vida.

É novidade, pois o flanco crítico principal brotou do universo feminino, das cada dia mais famosas e requisitadas feministas, outrora submissas apaixonadas (reciprocamente) pelo chicobuarquismo.

A capa de "Caravanas", que deve "vazar" a qualquer momento, mas foi antecipado para a imprensa

A capa de “Caravanas”, que deve “vazar” a qualquer momento, mas foi antecipado para a imprensa

Caravanas vem agora à tona, e há novidade no ar para além da antiga cantiga “Tua Cantiga”.

Toda aliterativa, a nova e cativante Massarandupió é uma parceria do respeitável senhor com o jovem Chico Brown (leia a letra abaixo).

A antiga Dueto (1980) é retomada em nova versão, com a substituição, no dueto, da voz original de Nara Leão pela de Clara Buarque. Francisco e Clara são netos de Chico Buarque, e filhos do homem-ritmo baiano Carlinhos Brown. O avô brinca com Clara em cacos adicionados à velha letra sobre astros, signos, dogmas, búzios, ciganas etc.: “Consta no Google, no Twitter, no Face, no Tinder, no WhatsApp, no Instagram…”. “No Orkut”, vovô acrescenta, risonho, para brincar de ressuscitar uma rede social tão ainda jovem quanto já defunta.

Orquestrada de modo antiquado (será?), a espetacular faixa de encerramento, As Caravanas, condensa o mistério e a revelação no novo velho trabalho do artista. A (c)antiga é protagonizada por negros e mestiços da cor de Carlinhos, Francisco e Clara (embora bem mais pobres), às vezes sob rudimentos de som primal de funk carioca. “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, versa em momento-chave a canção devotada à ascensão social à revelia de sujeitos antes ocultos na jovem sociedade brasileira. O assunto do velho Chico, aqui, é a ascensão fascista que nos ameaça a todas. Não existe tema mais antigo. Nem mais atual.

Chico que não é Brown e Clara que não é Nunes - foto Leo Aversa

Chico que não é Brown e Clara que não é Nunes – foto Leo Aversa

 

Duas letras

“As Caravanas” (Chico Buarque)

É um dia de real grandeza, tudo azul/ um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos/ e um sol de torrar os miolos/ quando pinta em Copacabana/ a caravana do Arará – do Caxangá, da Chatuba

A caravana do Irajá, o comboio da Penha/ não há barreira que retenha esses estranhos/ suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho/ a caminho do Jardim de Alá – é o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que maloca seus facões e adagas/ em sungas estufadas e calções disformes/ diz que eles têm picas enormes/ e seus sacos são granadas/ lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa/ a gente ordeira e virtuosa que apela/ pra polícia despachar de volta/ o populacho pra favela/ ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol, a culpa deve ser do sol/ que bate na moleira, o sol/ que estoura as veias, o suor/ que embaça os olhos e a razão/ e essa zoeira dentro da prisão/ crioulos empilhados no porão/ de caravelas no alto mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ filha do medo, a raiva é mãe da covardia/ ou doido sou eu que escuto vozes/ não há gente tão insana/ nem caravana do Arará

 

“Massarandupió” (Chico Brown-Chico Buarque)

No mundaréu de areia à beira-mar de Massarandupió/ em volta da massaranduba-mor de Massarandupió/ aquele piá/ aquele neguinho/ aquele psiu/ um bacuri ali sozinho/ caminha/ ali onde ninguém espia/ ali onde a perna bambeia/ ali onde não há caminho

Lembrar a meninice é como ir cavucando de sol a sol/ atrás do anel de pedra cor de areia em Massarandupió/ cavuca daqui/ cavuca de lá/ cavuca com fé/ oh, São Longuinho/ oh, São Longuinho/ quem sabe/ de noite o vento varre a praia/ arrasta a saia pela areia/ e sobre num redemoinho

É o xuá/ das ondas a se repetir/ como é que eu vou saber dormir/ longe do mar/ ó mãe, pergunte ao pai/ quando ele vai soltar a minha mão/ onde é que o chão acaba/ e principia toda a arrebentação

Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó/ num relógio de areia o areal de Massarandupió

 

Mais sobre Caravanas aqui.

A refavela desvenda 2017

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Refavela 40, Gilberto Gil

“O filho perguntou pro pai/ onde é que tá o meu avô/ o meu avô onde é que tá/ o pai perguntou pro avô/ onde é que tá meu bisavô/ meu bisavô onde é que tá/ avô perguntou bisavô/ onde é que tá tataravô/ tataravô onde é que tá.” Por um desses lapsos no espaço-tempo, as perguntas sem resposta de “Babá Alapalá” (1977) fazem eco no aqui-e-agora do show coletivo Refavela 40, que ficou em cartaz nos Sescs Pinheiros e Itaquera de São Paulo, entre 7 e 10 de setembro de 2017.

Gilberto Gil, o autor principal da quarentona Refavela, entra no palco já na reta final do espetáculo. À sua esquerda tem a filha Nara Gil e a nora Ana Claudia Lomelino, backing vocals do combo, e o pequenino Dom Gil, seu neto, participação especialíssima durante todo o show, que vovô trolla vezes sucessivas na voz de um herói-fantasma-preto-velho capaz de fazer o garotinho correr assustado (e brincalhão) para as coxias, para voltar segundos depois. Atrás de Gil está Bem Gil, seu filho e pai de Dom. Ao redor se dispõem outros filhos da grande família MPB, como Maíra Freitas (vocalista e pianista, filha de Martinho da Vila), Moreno Veloso (vocalista, filho de Caetano), Mateus Aleluia (trompetista, filho do homônimo integrante do mítico grupo de candomblé Os Tincoãs), Domenico Lancellotti (baterista, filho do compositor de sambas e romantismos Ivor Lancellotti), Céu (vocalista, filha de Edgard B. Poças, maestro e versionista de canções infantis para A Turma do Balão Mágico nos anos 1980).

Gil canta secundado pelo filho Bem, diretor musical de "Refavela 40" - foto divulgação/Alfamor

Gil canta secundado pelo filho Bem, diretor musical de “Refavela 40″ – fotos divulgação/Alfamor

Juntos, tataravô, bisavô, avô, pai, filho e neto (além das possíveis correspondentes femininas) ligam o ritual e aniversariam Refavela como uma utopia, em parte realizada, de reencontro num só ponto de luz da música do mundo, sobretudo do mundo negro. “Aqui e Agora”, reinterpretada com ternura por Moreno, adquire conotações subterrâneas, silenciosas, mas talvez ainda mais políticas que as de 1977, quando Gil, egresso de temporadas na cadeia em 1968 (por afronta à ditadura civil-militar) e 1976 (por uso de maconha), contava cantar que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora” inspirado pela perspectiva de um homem (preto?) aprisionado. É possível cantar que o melhor lugar do mundo é aqui e agora no Brasil que corteja o fascismo em 2017? Seja possível ou impossível, a renascença de “Aqui e Agora” e da Refavela religa sentidos no lapso de tempo entre os estados de exceção e as escravidões de 1964-68 e 2016-17. Tataravô, bisavô, avô e pai souberam o que é a privação de liberdade. Nós que hoje aqui estamos também sabemos, ainda que finjamos que não.

O mundo negro é revolvido com brilho pela superbanda composta por gente variada de menos de 7 a mais de 75 anos de idade. A utopia daquele Gil, que se consolidou de lá para cá e faz refavela na música eletrônica mundial de periferia dos tempos de agora (reggaeton, tecnobrega, funk, kuduro etc.), é o “povo chocolate e mel”, aqui no Brasil africano e indígena, de que falava a “Refavela” de 1977. Ao redor, há gente de todas as tonalidades de pele e há o embranquecimento da família Gil (senão o preteamento dos colonizadores europeus importo pelo clã baiano de que Gil hoje é buda caymmiano). “Ninguém sabe se ele é branco, se é mulato ou negro”, cantarola a certa altura Moreno, em citação ao “Xamego” (1958) do cigano pardo Luiz Gonzaga.

Com o sangue de samba rural de Martinho que lhe corre pelas artérias, Maíra canta o umbigo de Refavela chamado “Samba do Avião” (1962). Rejeitado à época pela crítica sempre refratária às antenas do tempo, o arranjo à la Banda Black Rio de Gil revestiu era central por promover um desembranquecimento do autor Tom Jobim e da verve carioca da bossa nova. O funk de James Brown, o tribalismo e o timbalismo da África negra e o reggae jamaicano desembarcavam com Gil no aeroporto marítimo do Galeão, pela via da dupla provocação de universalizar o nacionalismo do samba e empretecer o maestro soberano Antônio Brasileiro e seus filhos, futuros avós dos filhos de Carlinhos Brown.

Como em 1977, Refavela ainda explode e se estilhaça em direções infinitas, na pulsação da diáspora humana (e africana sobretudo) que “Exodus” (1977), do repertório do jamaicano Bob Marley, representa à risca na Refavela 40Refavela era e é a África de Fela Kuti King Sunny Adé (com quem Gil se reuniu na visita musical à Nigéria que originou o disco de 40 anos atrás), como era e é a Bahia negra dos afoxés Filhos de Gandhy (presente com “Patuscada de Gandhi”, a canção com que Papai Ojô assusta o netinho Dom) e Ilê Aiyê (o clássico “Que Bloco É Esse?”, com que Paulinho Camafeu mandava o branco tomar banho de piche para adquirir uma sombra de dignidade negra, e que Gil rebatizou “Ilê Ayê”). Refavela era e é funk norte-americano de James Brown, de George Clinton e do menino eterno Michael Jackson, como era e é reggae caribenho de Bob Marley, como era e é world music de Fela aos jovens da Abayomy Afrobeat Orquestra e do Tono (a banda pós-tropicalista de Bem) inseridos no supergrupo. O percussionista Thomas Harres, da Abayomy, traz ao palco o majestoso balafon, marimba africana que Gil apresentou ao Brasil em “Balafon”, na Refavela de 40 anos atrás.

A filha Nara, o neto Tom, a nora Ana - foto divulgação/Alfamor

A filha Nara, o neto Dom, a nora Ana

O repertório ampliado para compor um show inteiro é minucioso e privilegia o ano e o ideário odara de 1977. “Sarará Miolo”, lançada no disco Os Meus Amigos São um Barato, da bossa-novista Nara Leão, fala da mania de branco de ter cabelo liso já tendo cabelo loiro (“cabelo duro é preciso/ que é pra ser você crioulo”) – é de Refavela mesmo sem ser, e aqui em 2017 vem ressaltar como os cabelos afro estavam onipresentes na mente do Gil de 1977, desde os “cabelos da eternidade” de que fala “Era Nova” até a tensão subjacente entre as trancinhas afrobaianas, o black power carioca de Tim MaiaWilson Simonal e equivalentes, e o pretume bem-comportado demais (na opinião de Gil) dos sambistas cariocas, pai Martinho incluído.

Resta ausente do tributo o híbrido samba-soul Jorge Ben (Jor), propulsor indireto da Refavela tanto por conta do disco em dupla com Gil Ogum-Xangô (1975) quanto pelo individual África Brasil (1976). Se o samba-roqueiro Jorge queria ver o que ia acontecer quando Zumbi chegasse de volta em 1976, Gilberto fazia Zumbi dos Palmares acontecer em 1977 na medida do preto pobre que saltava do seu barraco para um bloco do BNH, Minha Casa Minha Vida em versão civil-militar entre-golpes. Ao cantar “Refavela” na sexta-feira 8, Gil cita como inspiração não só a Nigéria, mas também a carioca norte-americanizada Vila Kennedy, construída em 1964 pelo governador golpista Carlos Lacerda, pai disto tudo que está aqui.

Do mundo mestiço brotam as presenças simbólicas de Caetano (“Two Naira Fifty Kobo”, do disco Bicho, também resultante da excursão brasileira à Nigéria), Ney Matogrosso (o primeiro a gravar “Gaivota”, que reaparece na voz de Céu) e Dori Caymmi (filho miscigenado do paxá preto cigano indígena Dorival e arranjador da trilha sonora da série televisiva Sítio do Picapau Amarelo).

Foi Dori quem convidou Gil para compor e cantar aquela que viria se tornar a música-tema da série infantil da Globo em 1977 e encerra Refavela 40 como talvez o único hit pop de massa daquela safra nigérrima de 1977. A Refavela é mitológica a ponto de motivar o livro analítico de Maurício Barros de Castro na série O Livro do Disco (da editora Cobogó), vendido às dúzias no tabuleiro pop da Refavela 40, mas até hoje não foi assimilada pela oficialidade insistente na fórmula-fantasia do “não somos racistas”. Essa é a tensão que transforma em achado feroz a iniciativa de recuperar Refavela aos 40.

De resto, discursos supremacistas à parte, Tia Nastácia e a Taubaté do matuto paulista embranquecido Monteiro Lobato se incorporam à mitologia de diáspora negra da Refavela, e Dom Gil pula feito cabrito na despedida com o “Sítio do Picapau Amarelo”. O tempo-rei abre uma fresta no sofrimento do aqui-e-agora e a refavela desfila mais moça do que nunca, alegoria, elegia, alegria e dor.


Uma janela para o mundo

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Quando, aos 25 anos, Egberto Gismonti inventou uma canção “encrencada” chamada Janela de Ouro (A Traição das Esmeraldas), ele provavelmente não sabia que estava prefigurando a própria trajetória no mundo. “A janela do mundo é o Carmo, rapaz”, diz, de volta à palavra recorrente e ao Carmo, a pequena cidade fluminense onde nasceu, na divisa com Minas Gerais, filho da combinação improvável de um migrante libanês com uma migrante italiana, ambos acostumados a “dar ordens”.

Em fevereiro, no palco paulistano do Bourbon Street, Egberto comemorou discretamente 70 anos de vida e 50 anos desde que debutou no Festival Internacional da Canção, sob o pesadelo da iminência do Ato Institucional No 5, como autor de uma composição denominada “O Sonho”, que abriu a janela de sua obra para as vozes de Elis Regina, Maysa, Flora Purim, Johnny Alf e incontáveis intérpretes mundo afora. De lá para cá, a palavra perdeu volume no todo de sua obra e, a exemplo de outros instrumentistas e arranjadores brasileiros como Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Eumir Deodato, Naná Vasconcelos etc., a janela do mundo se tornou mais aprazível para Gismonti que a janela lateral do quarto brasileiro de dormir.

Curiosamente, a palavra é mote do projeto em que ele hoje trabalha, o de musicar oito letras entregues nos anos 1960 pelo escritor João Guimarães Rosa à então cantora Dulce Nunes, e mantidas até aqui desconhecidas. Outro sonho em forma de janela que ele acalenta é o de abrir uma fenda na internet para entregar aos “malucos” que amam sua música, gratuitamente, tudo que criou e cujos direitos de comercialização reconquistou das garras da indústria fonográfica internacional. Museu Ativo seria, ou será, o nome da próxima janela. “Eu tenho morado muito mais na floresta amazônica do que na Europa ou nos Estados Unidos”, afirma pelo telefone o criador que, embora dono de uma obra cigana e nômade por excelência, conta ter vivido em apenas duas casas fixas nos últimos 30 anos, ambas no Rio de Janeiro.

Foto Ziga Koritnik/Divulgação

Foto Ziga Koritnik/Divulgação

Pedro Alexandre Sanches: O que havia na cidade de Carmo que explique sua trajetória musical?

Egberto Gismonti: Eu venho do Carmo por uma razão, que é a semente de tudo. Meus pais migraram para o Brasil, ele de Beirute, no Líbano, e ela da Catânia, na Itália. Meu pais resolveram, pelo destino, abandonar seus países, o que é sempre uma história muito emocionante. Eles sempre tiveram a consciência de que abandonaram seus próprios países, e teriam tido a sorte extraordinária de se encontrarem no Carmo, um lugar que nem sabiam que existia. Sou fruto dessas duas realidades, por parte de mãe dos italianos que gostam de ficar rindo, falando alto e tocando violão, e por parte de pai dos libaneses silenciosos, autoritários, machistas, que tocam piano.

PAS: Eles se encontraram já no Carmo?

Em 1972, Água & Vinho, o primeiro álbum pela Odeon

Em 1972, Água & Vinho, o primeiro álbum pela Odeon

EG: Chegaram ao Rio de Janeiro e se encontraram no Carmo, saíram em grupos naquelas carroças, ou ônibus, sei lá eu como era. A migração era meio assim no estado do Rio, não foi planejada como foi a dos europeus que foram para o Sul do Brasil porque ouviram falar que plantando tudo dá. A imigração no Sul teve pessoas de países inimigos que ficaram amigas a ponto de fazer a agricultura do Brasil. O lado machista da família dizia: “O Camilo deu muita sorte, porque encontrou uma moça que não é árabe, mas é uma boa moça”. O lado materno dizia: “Não vai dar certo, porque os árabes são machistas”. Mas a gente aprende que toda forma de amor vale a pena. Teoricamente não daria certo um pai machista que dá ordem com uma mamma italiana que dá ordem também. Mas eles criaram três filhos sob princípios malucos que nunca vi na vida e que tentei repetir com meus filhos. Meu pai dizia que os filhos desde muito cedo deveriam aprender música, idiomas e contabilidade. O idioma seria o francês ou o italiano, e acabou sendo o francês por causa do lado árabe do meu pai. “Minha filho tem que ter liberdade para escolher o que quer”, meu pai dizia. Graças à contabilidade, eu administro três editoras, duas gravadoras, sou conhecedor das leis. Eu queria administrar, ou ter o direito de comercializar meus discos na Odeon. Ninguém tinha conseguido sentar com o inglês que administrava a Odeon para negociar isso, e eu tive a alegria, há 20 anos, de me encontrar com o superintendente em Londres e negociar com ele. Ficou relutante no início, pediu que eu desse uma razão para que eu negociasse meus direitos, que pertenciam a ele, para vender minha música no território dele.

PAS: Qual foi a resposta que convenceu ele?

Em 1977, com Dança das Cabeças, a estreia no selo ECM

Em 1977, com Dança das Cabeças, a janela aberta e a estreia no selo ECM

EG:  Eu tinha sido treinado por dois advogados, que passaram um mês me orientando. As respostas melhores são as mais simples, apesar de difíceis de descobrir. Ele certamente já conhecia a resposta, absolutamente já conhecia. Ele conhecia meus discos para o selo ECM e sabia que vendiam sob aquele aspecto do “de grão em grão a galinha enche o papo”. Vendiam cerca de 100 mil exemplares cada um, mas eram 100 mil em 42 países. Ele sabia disso. Eu respondi com uma pergunta, prevista pelos advogados que me orientaram. Quando ele iniciou a conversa com essa pergunta eu pensei: “Ih, ele tá lascado”. Respondi tremendo feito vara verde, mas respondi: “Meu caro senhor, tenho que lhe fazer uma pergunta. O senhor prefere receber 100% de nada ou 2% de uma cotinha mínima? O senhor tem vários discos meus com média de vendagem de 80, 100 por ano. Do outro lado, na ECM, eu faço vender 80 mil exemplares por ano de cada disco. Música é igual, as da Odeon ou as da ECM. Vocês não gostam dessa música e não sabem vendê-la. Eu gosto e sei”. Fui embora, três meses depois chegou a carta dele com os termos do acordo. Eu não sou proprietário dos meus discos na Odeon, mas sou proprietário dos direitos de comercialização deles. Pratico com minha obra algo que chamo de gratuidade. Reconheço que cheguei a certos números – 70 discos, 32 trilhas de filmes, 30 de peças de teatro, não sei quantos bales – porque tem gente me patrocinando. Quem vai para o teatro ver uma apresentação de um artista e o recebe com um sorriso está dando a ele o que tem de mais caro, que é o seu tempo de vida. Sou partidário de que só um gesto é revelador de fato. Para tal, o meu processo de corrida pela gratuidade chega a que ponto? Ano passado fui ao Japão, como vou anualmente, e pude fazer uma coisa graças às leis japonesas, que tornaram o projeto possível. Tenho 18 discos pela Odeon, e como tenho o direito de comercialização deles, resolvi imprimir 4.00o caixas com 18 discos cada, para serem vendidas pelo preço de dois discos de lançamento, e não de 18. O Japão possibilita isso, o Brasil não possibilita. Passei tempos correndo atrás para mandar imprimir caixas dos meus discos aqui e dar de graça ou vender baratésimo, mas a lei brasileira do direito proíbe isso, porque tenho de pagar impostos sobre a criação dos discos, mesmo que eles não tenham sido criados no Brasil. É uma história muito longa, vai cair como bitributação, complica muito. Mas onde quero chegar é que no Japão 4.000 caixas foram vendidas em três horas. Não é porque eu seja bonzinho, não, é porque aquelas pessoas estão me sustentando, estimulando que eu continue sendo músico, há 15 anos.

PAS: Então não é exatamente gratuidade, mas vender a preços muito baratos?

EG: É gratuidade porque tem coisas que são gratuitas. Quando fui a Buenos Aires, há sete ou oito anos, fiz um concerto no Teatro Colón, para 4.100 pessoas. Três anos depois, consegui o direito de comercializar a gravação daquele show, fiz um outro concerto, as pessoas não sabiam, compraram ingresso, assistiram ao concerto e na hora de sair pedi que fizessem fila e tinham lá 3.500 discos do concerto para dar de graça para as pessoas. Quando pode ser de graça é porque a lei permite. Quando a lei não permite a gratuidade, o mínimo possível…, 18 discos pelo preço de dois eu estou chamando de gratuidade, porque, tenha a paciência…

PAS: Há discos seus que são raros no Brasil a ponto de só serem acessíveis se roubados via internet. Essa modalidade entra no capítulo da gratuidade? Como encara isso?

A árvore imensa na capa de Egberto Gismonti, de 1973

A árvore imensa na capa de Egberto Gismonti, de 1973

EG: Eu sou absolutamente liberal com tudo. Essa tecnologia, se por um lado cria uma série de novas questões financeiras, e cria, por outro lado cria novas questões altamente positivas. Por exemplo, é muito raro pensar que um artista hoje crie um disco que conte uma mesma história em dez, 11, 12 faixas. Os discos de hoje, diferentes dos da década de 1970 – não estou falando dos meus, digo todos -, contavam uma história que tinha princípio, meio e fim. Como hoje lê-se muito menos e presta-se muito menos atenção, ninguém tem uma sala com sistema de som muito bom em que se possa sentar e ficar em silêncio para ouvir música. Todo mundo ouve da pior maneira que tem, com fone enfiado dentro do ouvido andando no trânsito, no ônibus, no avião, no diabo que seja. Isso determina que raríssimas pessoas, exceto os chamados discófilos, que continuam existindo, parem para escutar com atenção. Isso faz com que, no meu caso específico, muito mais que um disco com 70 minutos de ideias musicais, eu prepare fonogramas, uns atrás dos outros. Como faço muito cinema, balé, teatro etc., tenho uma produção constante que me possibilita utilizar composições, gravações, coisas ao vivo etc. Porque continuo tocando e continuo negociando direito de comercialização dos fonogramas. Então o projeto maior que eu fiz, que não consegui colocar ainda à disposição, é um negócio que se chama Museu Ativo. Esse processo iniciou-se tem quase três anos. É um negócio que envolve quase mil músicas, que é o que eu compus e registrei. Não esquecer também que eu sou editor das músicas, seja na América do Sul, do Norte ou Europa. Eu tenho editoras, não sou editado por ninguém. Então eu posso usar e flexibilizar o que eu quero pelo preço que eu quero, porque sou detentor do lucro ou do prejuízo. A ideia era – e continua sendo, eu só não consegui meios ainda para minimizar um pouco o prejuízo ou o gasto que eu teria – disponibilizar àquele que procurasse o meu nome na internet uma página sem nada escrito exceto uma janela, onde se pedisse para que o usuário escrevesse o nome de uma das músicas do Gismonti de que ele gosta. No que ele escreve uma música, esse negócio processa e aparece na frente dele uma árvore imensa, dizendo “esta música de nome X foi gravada por tantas pessoas”, abre uma árvore mostrando os links para essas pessoas todas, “foi usada nos discos A, B, C, D”, abre outra árvore, nos filmes, teatro, balé etc. E tudo que me pertença está disponível para baixar gratuitamente.

PAS: Que lindo isso.

EG: Não tem nada de streaming para ouvir, não. É para baixar gratuito. A ideia era essa, e no final das coisas tinha partituras, porque eu também, sendo editor, tenho a possibilidade de ter, como já fiz alguns livros de música, a editora que trabalha com papel, que imprime livro. E os livros são partituras, sejam songbook ou peças para orquestra. A minha intenção era disponibilizar isso tudo gratuitamente. E onde entrou o primeiro problema, que eu desconhecia?, descoberto por aqueles que estão forjando esse… Não é um site, seria classificado de site se tivesse venda de alguma coisa. Como não quero vender nada, tenho que correr por fora e pagar mais caro do que as pessoas que estão vendendo. Porque se eu não quiser vender, aquele canal não dará lucro a ninguém dentro da internet. Por isso é mais caro, ou seja, o barato sai caro pra danar nesse caso. A conclusão a que chegaram os técnicos, coisa que não sou, é que, para que eu considerasse que até 50 pessoas pudessem estar ligadas num certo momento naquele canal chamado Museu Ativo, eu precisaria do que eles chamam de três máquinas de aceleração, que são as máquinas de processamento da internet, para não congelar, o cara não parar de ouvir no meio etc. E essas três máquinas pelos próximos dez anos custariam 3.120 dólares por mês, o que significa 40 mil dólares no final do ano, 400 mil dólares em dez anos. Até aí eu fui e não pude continuar porque é muito dinheiro. Mas estou procurando maneiras vinculadas a ONGs internacionais e tal, e vou conseguir, espero. Minha ideia é disponibilizar absolutamente tudo, para que quem goste da coisa que eu faço tenha acesso a tudo, e acabou, seja show ao vivo, gravação que não tem em disco… Tem um processo que vem acontecendo há muitos anos. Independentemente das casas em que morei nos últimos 30 anos, que na realidade foram duas, em cada casa dessas tem uma pequena sala que funciona fechada com desumidificador 24 horas por dia. Tenho gravações de 30, 35 anos atrás, que soam perfeitamente bem e que não quero lançar em discos, quero dar de presente. Disponibilizar para as pessoas simplesmente baixarem o que quiserem, e se não quiserem não baixa, escuta, assiste ao show, enfim. Eu sou muito adepto da coisa do computador, gosto muito. Não tenho nada de rede social nem de site, porque detesto isso. Meu problema não é com computador, eu sei escrever aplicativos. Estudei para poder escrever os aplicativos de que precisava e me diverti com isso, mas não gosto de rede social. O ensinamento que vem lá do Carmo…

PAS: Sim! Demos a volta ao mundo começando ali…

Carmo, LP de 1977 pela EMI-Odeon

Carmo, LP de 1977 pela EMI-Odeon

 

EG: A janela do Carmo é o mundo, rapaz. Essa conversa toda é para dizer que o Carmo é a melhor janela para o mundo, você não está entendendo.

PAS: Os seus pais ficaram lá e você saiu, ou eles saíram também?

EG: Não, eu saí junto com eles, quando eu tinha 6 ou 7 anos. Meu pai era coletor federal, além de árabe, que gosta de vender coisas e comprar coisas. Então ele vendia pianos, afinava pianos junto com outros parentes, irmãos que tinham armarinhos que vendiam fazenda, calça, botão, agulha, essas coisas. E por conta disso nós saímos do Carmo, que é quase fronteira com Minas Gerais, altura de Poço Novo do Cunha, Além Paraíba.

PAS: Você é nitidamente muito mineiro, além de fluminense…

EG: É, eu brinco com isso, porque a gente tem o sotaque de Minas lá no Carmo, e a gente teima em dizer que “nóis num somo minêro, não, uai”. Mas é tudo evidente, a cultura mineira está toda lá, aquelas ruas de pedras coloniais, está tudo lá.

PAS: Está muito na sua música também.

EG: É, de certa forma sim.

PAS: Penso especificamente no disco com Wanderléa, que é uma mineira, e ali muita coisa se tornou evidente.

Vamos Que Já Vou (1977), disco de encontro de Wanderléa com Gismonti

Vamos Que Já Vou (1977), disco de encontro de Wanderléa com Gismonti

EG: Ah, a Léa é uma delícia. Eu me sinto, claro que sobre o direito que ela me deu, eu tenho uma relação com as duas filhas lindas que ela tem. A gente tem uma intimidade como se eu fosse uma espécie de pai delas também, coisa que não sou, mas aceitei a comenda, sabe como é?, de um pai ficcional. De vez em quando elas me ligam, vêm cá para casa, passam um dia, dois. Gosto muito das duas, e Léa então, nem se fala, aquilo ali é uma beleza de pessoa. Foi feito um belo livro agora sobre a vida dela.

PAS: Fala de você.

EG: É, fala de mim e pediu que eu escrevesse a orelha. Acabei escrevendo, porque ela insistiu. É uma grande amiga.

PAS: É uma ponte muito legal, porque ela é tida como muito popular e você, como muito erudito, e não existem essas fronteiras, né?

EG: Na realidade, quando nós vivemos juntos e fizemos disco juntos existia um pouco essa divisória. Hoje em dia, não. Hoje, a Léa, que lá pela década de 1970 e 1980, quando a gente ficou casado, juntos,  namorava muito e tal, muita gente do chamado meu lado da história não era muito simpatizante, “puxa vida, jovem guarda”, não sei o quê. Aí passam-se esses anos todos, e a Léa, só em São Paulo o espetáculo sobre a vida dela ficou dois ou três meses em cartaz. Volta e meia vem ao Rio e faz casas lotadas, e pelo Brasil inteiro. É uma figura que marcou uma época, e sobretudo é uma mulher muito reta, uma coisa de uma dignidade absoluta, correção total. E no fundo isso é que vale, né? E teve o peito de fazer aquele disco, que é fundamentado em paixão, só. A gente estava inteiramente apaixonados, e tudo parecia normal.

A trupe de Wanderléa em 1977

A trupe de Wanderléa em 1977

PAS: E é o trabalho mais mineiro dela, não é curioso?

EG: Você acha? Nunca tinha pensado sob essa ótica de Tiradentes.

PAS: Mudou aquele momento para os dois, tanto para você quanto para ela. Você a rigor não é mineiro, mas ajudou ela a fazer aquilo.

EG: É, aquilo ali foi feito com muita alegria. O disco todo tem essa característica, da primeira à última faixa. Tem sempre uma alegria de todo mundo que está tocando, cantando, é tudo uma alegria danada. É muito bonito. Infelizmente o disco não teve, digamos, um resultado que se desejava. Mas não quer dizer nada, porque historicamente ele está aí, marcado, visto.

PAS: E ele saiu pela Odeon, assim como os seus. Se fosse pela ECM talvez a história fosse outra?

Academia de Danças, de 1974

Academia de Danças, de 1974

EG: Aí é uma coisa completamente diferente, isso aconteceu porque naquela época a liberdade que tínhamos – e estou falando em nome de artista – era imensa. Eu, quando paro e olho os discos que gravei na Odeon, são discos cada um mais encrencado que o outro. E aí discos como, por exemplo, Academia de Danças, que foi um disco que levou todo tipo de crítica da superintendência do Brasil, que na época era inglesa, que disse para os vendedores: “Esse disco não tem jeito”. Antigamente tinha reunião de vendedores, e eu estava presente numa dessas. Não precisava me disfarçar porque o superintendente não me conhecia. Eu parecia mais um vendedor, e ouvi literalmente ele dizendo “esse disco não tem sequer uma música para se fazer trabalho”.

PAS: Você estava nessa reunião como espião de si mesmo?

O eletrônico Trem Caipira, de 1985

O eletrônico Trem Caipira, de 1985

EG: Não, eu fui convidado pelo chefe da divulgação, o sujeito que inclusive anos depois bateu o pé na Odeon que eu tinha que fazer uma turnê de divulgação para lançar o disco Trem Caipira, com músicas do Villa-Lobos. Rodamos sete ou oito estados do Sul até a Amazônia, pela costa toda, e quando chegamos no último estado, depois de um mês, ele disse: “Quer uma notícia?”. Quero. “Pronto, o disco já chegou a 100 mil cópias.” E não tinha sido lançado o disco. Mas ele me chamou para essa reunião porque ele queria que eu visse como era o negócio dos vendedores. É curioso, viu?, porque a minha música sempre foi considerada muito complicada, mas é a música que inaugurou de certa forma o Circo Voador com casas lotadas, e inaugurou o bondinho do Pão de Açúcar. Hoje em dia fica até brincadeira se eu falar que tenho um disco – claro que ele já tem quase 40 anos – que está colado a 1 milhão de cópias, que é o Dança das Cabeças. É engraçado, né? Porque continua sendo aquela mesma música confusa de sempre. Só que o mundo mudou e tem 1 milhão de malucos aí que gostam de ouvir aquilo, pronto. O meu respeito pelas pessoas, daí o negócio da gratuidade – e aqui não tem demagogia nenhuma, porque se não precisei disso até hoje não é agora que vou brincar de demagogo. Eu nunca na vida, se tivesse que imaginar a melhor coisa do mundo, poderia imaginar que fosse tocar todo ano por tantos países pelo mundo afora, ser reconhecido em tantos lugares, e sempre com uma generosidade muito grande. Quem gosta dessa música não gosta porque é fanático, arranca cabelo, arranca camisa, nada disso, não. É tudo muito tranquilo, mas é uma fidelidade que é um negócio impressionante.

Visto por uma janela enclausurada, na capa do inaugural Egberto Gismonti (1969)

Visto por uma janela enclausurada, na capa do inaugural Egberto Gismonti (1969), lançado pelo mítico selo Elenco, com vocais e “O Sonho” como carro-chefe

PAS: Você surge para o público nos festivais, com O Sonho”, e no início você cantava.

EG: Cantava também porque não tinha quem cantasse. Nunca gostei, não. Eu cantava no início porque não tinha quem cantasse.

PAS: A pergunta que eu ia fazer é por que a voz com o tempo foi desaparecendo e você foi deixando de ter a palavra como uma referência na frente.

EG: Na realidade, fazer canções é uma coisa que volta e meia eu faço, porque faço muito cinema, teatro, essas coisas. Faço porque gosto, mas eu particularmente aprendi na minha vida que devo fazer aquilo que faço com muita alegria e facilidade. E cantar não é uma dessas coisas. Você não imagina o sofrimento que era para mim o momento em que chegava no estúdio, estava tudo pronto, orquestra, tudo gravado, uma beleza. Quando eu ia cantar, era um sofrimento…

Sonho 70 (1970), o segundo LP, com vocais de Dulce Nunes

Sonho 70 (1970), o segundo LP, com vocais de Dulce Nunes

 

PAS: Por que, Egberto?

EG: Medo. Medo de cantar. Medo, é. Mas não preciso tratar disso, não, estou me sentindo muito bem.

PAS: Mas é curioso, as outras coisas não davam medo? Só cantar?

EG: Não, nada. Eu não tenho medo de nada, nem cantar, hoje em dia, não. A gente vai adquirindo a chamada casca de sem-vergonha. Não tenho vergonha de nada. Mas hoje em dia não me comprometo com nada com negócio de cantar, nada. Tem um monte de amigas minhas, do Brasil e fora, que já gravaram discos inteiros com músicas minhas e me convidaram, “vem participar”, “vem cantar”. Eu digo: “Não, não vou não. Posso ir aí tocar um pandeiro, qualquer coisa, mas cantar eu não vou, não”.

PAS: Mas lá no começo você usou muito outras vozes, de Elis Regina e Dulce Nunes a Wanderléa muitas pessoas interpretaram canções suas.

EG: Isso foi acontecendo, e quando foi acontecendo, seja Elis, Regininha, Alaíde Costa, Agostinho dos Santos, Johnny Alf, tem gente como o diabo que gravou coisa minha. Quando começaram a gravar, aí eu relaxei, porque dizia: então posso continuar fazendo minhas canções, sobretudo com Geraldinho Carneiro e Paulo César Pinheiro, que sempre vai aparecer alguém para cantar. O que eu não queria era fazer coisas que não fossem ser tocadas ou gravadas nunca. Na medida em que apareceram pessoas cantando – me lembro de Maysa, que gravou quatro de uma vez num disco, e também Agostinho dos Santos, Johnny Alf também -, eu disse: não preciso mais me meter a isso, porque não sei fazer. Deixa eu tratar do que eu sei fazer e gosto.

PAS: Há uma série de artistas – você é um deles, mas Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Eumir Deodato –  que são mais musicais fora do domínio da palavra, e isso coincidiu com aquele momento de repressão que o Brasil estava vivendo. E ao mesmo tempo, mesmo sem usar a palavra, vocês meio se exilaram, foram ser conhecidos musicalmente mais fora do Brasil que no país de vocês. Não sei se você entende o que estou querendo dizer…

EG: Entender eu entendo, eu só não concordo.

PAS: Me explica?

EG: Eu entendo perfeitamente, mas não concordo, não. Acho que cada um de nós, não só os citados, mas quantos outros você queira, passou por momentos de dificuldade em relação ao processo político que tivemos, de sistema militar e tal. Cada um de nós passou. Eu particularmente participei de muitos grupos que corriam de lá para cá, daqui para lá, procurando consertar o mundo. No início das década de 1970, a repressão existia, já estava determinada, mas não se vivia 24 horas por dia o sentido e o sentimento dela. Repressão militar. Até porque foi o AI-5 que determinou que a guerra iniciou para todos, e acabou, tchau.

PAS: Exatamente quando você estava compondo e apresentando a canção “O Sonho”.

EG: Exatamente. E aí eu assisti, nesse finalzinho de tempos antes de eu ir embora para a Europa, mas eu fui contratado para ser arranjador de uma atriz francesa, Marie Lanforêt. Não tinha nada a ver com fugir do Brasil, nada disso. Ela era atriz daqueles filmes com aqueles atores como Alain Delon, Jean Paul Belmondo etc. Eu cheguei a assistir, na Ilha do Fundão, numa das reuniões que os jovens marcavam e eu lá estava, de vez em quando chegava a polícia com cavalo, sem cavalo, com o diabo que seja, baixando o porrete e atirando. E eu tive momentos do grupo em que pessoas foram baleadas, e o diabo a quatro. Eu fui levado ao Dops várias vezes, por conta de ter participado de coisas. Por exemplo, tem um filme, que hoje é historicamente considerado um dos marcos, que é uma decisão do diretor Roberto Farias, quando ele fez Pra Frente, Brasil (lançado em 1982). Ele reuniu um grupo de pessoas, me incluiu porque eu já tinha feito algum cinema, e disse claramente para todo mundo: “Olha, tem um projeto que vou começar a filmar e quero saber quem está disponível a ficar, e certamente para levar pancada, ser levado para lá e para cá, sumir de vez em quando, porque é um filme que não tem espaço nenhum para ser lançado, mas nós vamos lançar”. Eu fiz a música desse filme e por causa dela eu fui levado várias vezes. Eu morava ali na rua Artur Araripe, perto da praça Sibérius, da Marquês de São Vicente, numa época que não tinha aqui no Rio aquela avenida que passa dentro de um prédio e vai para a Barra da Tijuca. O Tom Jobim morava por ali, e duas vezes nós fomos apanhados em casa para irmos para o Dops no mesmo camburão. Eu nunca me esqueço, quando entrei no carro tinha o Tom sentado.

PAS: Que ano foi isso?

Com Rejane Medeiros na capa de Em Família (1981)

Com Rejane Medeiros na capa de Em Família (1981)

EG: Ué, é 1971, no máximo. E Tom vira-se para mim e diz assim: “Ô, Gismonti, mas que prazer em revê-lo”. Eu digo: “Você não sabe que prazer tenho eu de te ver, porque eu, com você, estou com o papa. Sumir eu não vou, posso ficar lá num lugar bem frio, mas com você não sumo”. Mas enfim, o que quero dizer é que acabei passando por essa dificuldade toda que muita gente passou. Participei de movimentos como Musicanossa, fui a São Paulo, no Tuca, participei de muitos shows onde o coro comia. Quem tem hoje 60, 70 anos em diante sabe que que é sair correndo porque a polícia está chegando, sabe como é?, sem razão específica nenhuma. Você não deve ter vivido uma coisa que a geração a que eu pertenço viveu, que era reunir-se todas as noites em botequins. Aqui no Rio a gente tinha feito quase que uma eleição surda e elegemos dois bares no Baixo Leblon, um deles chamado Diagonal, onde a gente encontrava diariamente, todo mundo com 20 anos, para consertar o mundo. Isso é uma coisa normal, todo mundo é imortal quando tem 20 anos. E a gente consertava o mundo todo dia, ia para casa meio bêbado, acordava de manhã, tomava uma cerveja, tomava um banho e voltava para o bar. Nós consertávamos o mundo sem nenhuma objetividade, mas isso era um exercício de direito à liberdade. Não por coincidência, aparecem Leila Diniz e outras mulheres, inclusive a mãe dos meus filhos, Rejane Medeiros, que também participa de movimentos de liberação, da forma que cada um podia fazer. Lembro Leila Diniz com uma barriga de não sei quantos meses, da Janaína, filha dela e do Ruy Guerra, indo para a praia de biquíni com a barriga exposta, isso há 50 anos era um absurdo. Era caso de polícia. Nesse momento eu conheço Ruy Guerra e vou conhecer todo mundo no meio de cinema, de teatro, a Fernanda e o Fernando Montenegro (Fernando Torres), Mauro Mendonça, Naum Alves de Souza, enfim. Vou conhecendo a todos, os coreógrafos, e eu que sempre tive disponibilidade a experimentar música, seja com uma pessoa ou com uma orquestra grande. Me adaptei muito a um sistema dos anos 1970, em que o Brasil dava a possibilidade de se experimentar coisas. Mesmo a indústria, a Odeon no Brasil foi uma das portas mais importantes para se experimentar coisas. Milton Nascimento, Gonzaguinha, Taiguara

PAS: Paulinho da Viola, Marcos Valle

EG: …Pode falar 20 nomes, a Odeon sempre experimentou. E às vezes não dava certo, e eles insistiam, insistiam. Era muito bacana de ver. Infelizmente, isso é uma questão financeira, hoje em dia já não existe mais essa possibilidade da experimentação, o que eu acho muito prejudicial, porque só evolui aquele que tem boas críticas. Você ter como crítico você mesmo, compra um espelho, olha para o espelho e pergunta se existe alguém mais bonito que você, isso é o pior exercício de liberdade que existe, né? Eu sinto que isso está muito impregnado hoje de uma maneira geral, não por culpa de ninguém, mas pela situação de dificuldade.

PAS: Uma pergunta inevitável: tendo vivido 1968, que paralelo você faria com o tempo atual, que está sinistro de novo?

EG: Sim, está um horror. Só que a dificuldade de hoje não é pior nem melhor. Ela é completamente maléfica, a de hoje, porque não se luta por uma melhora. Se luta por uma destruição dos piores. A gente tinha um sonho de liberdade, de compor, de escrever. Hoje em dia eu conheço muita gente que tem 20, 30 anos de idade, até porque trabalho muito com muita gente, e as pessoas ficam loucas correndo atrás de projetos que podem financiar uma apresentação, uma gravação, e ficam muito dependentes de um pai, entre aspas, inexistente, que é a indústria fonográfica. Acabou isso, acabou. Se por um lado a tecnologia facilita, por outro lado o exercício de quem faz hoje… Tem muitas coisas que eu penso sobre o século XXI, uma das coisas é que o músico de maneira geral tem que tocar é a vida, não é um instrumento. Instrumento é obrigação, já que ele é músico. Se você espremer a imensa maioria dos músicos – e aí não é uma questão brasileira, é quase que geral -, o conhecimento, o interesse, o estudo do exercício profissional é muito raro. Já não existem mais formações nesse quesito chamado música no Brasil. Formação. Uma coisa é você estudar para ser um concertista, tocar repertórios europeus etc. Outra coisa é você estudar para escrever orquestras, reger orquestras ou tocar numa orquestra. E outra coisa é você estudar para evoluir o seu pensamento musical, porque você não quer fazer curso acadêmico e prefere o autodidatismo. Isso não existe no Brasil mais. O autodidatismo antigamente no Brasil era assistir shows de Baden Powell, Tom Jobim. Eu ia em Copacabana a várias boates ver os pianistas tocarem, os organistas tocarem. Hoje não tem mais isso. E não é porque não tem músico, não, que se você sair de noite no Rio de Janeiro você vai desaparecer, vai morrer, vai levar um tiro. A situação hoje é muito maléfica. Não acho que seja pior nem melhor, não, mas é diferente da que eu vivi. Eu não acho que a que vivi seja melhor, de jeito nenhum, mas eu consigo me lembrar de que os anos se passaram e eu continuo com uma chama acesa, de querer descobrir coisas. E isso me foi dado, me foi imposto por uma sociedade quando eu tinha 20, 30 anos.

PAS: Politicamente você acha que estamos de novo perto de uma ditadura, ou dentro de uma?

EG: Eu não chamaria de ditadura porque ditadura a gente conhece. Acho que neste momento nós não temos sequer algo para admirar em contrapartida ao que a gente odeia. Nós só queremos que a maioria de tudo que a gente está vendo em nome de políticos, de atitudes, de leis que não são votadas, de compras de voto, de enrolação, dessa mentira generalizada… O único desejo que eu tenho hoje é que o Brasil melhore para que meus filhos, que têm 30 e poucos anos e daqui a pouco vão me dar netos, tenham a alegria e a esperança de que este país vale a pena. Não paro de rodar o Brasil, porque estou procurando razões para continuar. Você pode imaginar que tem uma hora, para quem tem facilidade de rodar o mundo todo ano muitas vezes, que eu poderia morar fora, como já fiz. Mas estou brigando para não sair do Brasil., Há uma semana cheguei de Caruaru, João Pessoa, Recife. Fui passar uma semana em companhia do João do Pife, com a Banda de Pífanos de Caruaru. Fui para a feira de Caruaru vender pife com ele, ver a realidade desse negócio. E só estou encontrando coisas realmente estimulantes no Brasil relacionadas a pessoas que são sementes ou raízes de fato. A coisa que está mais recente, notícias de política, eu ouço e fico com tanta vergonha de tanta safadeza, em saber que estou dentro desse bolo, porque sou brasileiro. Cada vez que saio do Brasil e baixo na Europa, em países que sempre foram muito críticos… E aqui não estou concordando que eles sejam, não, mas eles têm como princípio serem críticos. A França é um país detestável sob o ponto de vista do julgamento do outro, eles nunca admitem o próprio erro, todo mundo está errado, e o Brasil voltou a ser a bola da vez da França, o que eles chamam de imprensa marrom. Você abre o jornal Le Monde, ou um jornal não interessa qual, eles o tempo todo falando e generalizando. Não tem ninguém que diga “um grupo de políticos do Rio de Janeiro fulano e beltrano” ou “o grupo do governador tal roubou isso”, dizem “os brasileiros”. Eu leio aquele troço, me dá um nojo. E ao mesmo tempo não posso descreditar o que eles estão falando, porque eu sou brasileiro. Então a atitude política que eu hoje consigo ter é partir para o absolutamente contrário a isso, como por exemplo a coisa que te contei rapidamente chamada gratuidade.

PAS: Política pura.

EG: É, não é para ter público maior, para ganhar dinheiro, para fazer gracinha para ninguém. Quando eu chego em Paris, Japão, muitos da Europa e da América do Sul e falo em gratuidade, você não imagina o quanto de emoção fica estabelecido, de ver que as pessoas não estão me qualificando, estão despertando em si aquela janela que às vezes se fecha por causa do cotidiano da gente, que ninguém quer admitir nada além de afeto puro, todo mundo tem que ter um troco em alguma coisa. Isso é um negócio que me deixa muito revoltado, e eu tenho lutado contra isso. Acredito que eu possa conseguir em mais seis meses ou um ano, eu continuo tentando descobrir fórmulas para poder operabilizar esse negócio. A política de que estou correndo atrás é essa, a política de correr menos riscos. Não vou a todos os lugares que gostaria. Tem lugares que ficaram proibitivos de fato, você pega as Linhas Amarela e Vermelha no Rio de Janeiro, tem que escolher um horário xis que dura, sei lá eu, duas ou três horas, nas quais o risco é de 5 ou 10% só de levar uma bala. Não é possível. Não é possível imaginar que a vida tem que ser assim. Eu não sei o que fazer, porque eu não sou político. Eu não sei. Agora, a única coisa que posso fazer é radicalmente ser contra e não admitir que na minha casa entre, nem que seja por um sopro de vento sudoeste, nenhuma dessas pessoas que já estão mais que conhecidas, a gente sabe nome e sobrenome, endereço, CPF, tudo, dessas pessoas que são safadas e destruíram um estado inteira e por consequência a saúde, a seguridade social, o transporte, a educação, a alimentação. Você fica olhando os chamados velhos brasileiros, as pessoas de idade, carregando coisas, morrendo em fila, esse troço me dá uma sensação de desesperança que não tem fim. Não tem fim. O que eu posso, do meu lado, fazer, é isso que eu tenho tentado fazer: faz shows e não cobra, dá discos de presente, viabiliza, facilita. Tem um monte de coisas acontecendo no Brasil que eu cedi fonogramas para servir de fundo musical para peça de teatro, exposição, balé. Não estou querendo colocar o meu negócio para o meu nome estar presente, não. Aliás, ninguém sabe disso que estou te falando, e eu prefiro nem citar nomes, porque fica parecendo que estou fazendo jogo de demagogia. Não gosto disso, daquelas coisas de pessoas que sobem em palco e dizem “boa noite a todos, vocês são a razão da minha vida”. Não gosto disso. Mas não estou criticando quem fala, não, eu não falaria um negócio desses de jeito nenhum. Não considero que sejam os princípios que me foram passados como princípios de respeito ao ser humano. Não é assim.

PAS: Agora há pouco você falou que em 30 anos morou só em duas casas. Ouvindo sua música, eu juraria que você morou em 500 mil lugares. Sua música é nômade por excelência.

EG: O mundo é pequeno hoje, né? Você tem razão com a sua observação. Na realidade, no Rio de Janeiro, eu morava na rua Artur Araripe, depois viajei para fora, quando voltei morei um pouquinho numa rua chamada Maria Angélica e em seguida na rua Itaipava, que é tudo Jardim Botânico. E daqui não saí. Só que eu saio daqui. Em 2017 fiz sete viagens para fora do Brasil, sem incluir América do Sul. Porque hoje em dia você vai a Porto Alegre e já está no Uruguai, vai no Uruguai já está na Argentina, vai na Argentina já está no Chile, pronto. É tudo muito próximo. Eu viajo muito.

PAS: Muitos instrumentistas foram morar fora, como estávamos dizendo, mas esse não foi o seu caso. Você ficou no Brasil.

EG: Mas eu não tenho essa capacidade, quem eu conheci que tem são pessoas como Naná Vasconcelos, que já se foi, João Gilberto, o próprio Airto Moreira. Essas pessoas têm a capacidade de não se deixarem influenciar pela cultura estrangeira. Eu não tenho essa capacidade. Já morei fora um pouco, na Europa e nos Estados Unidos.

PAS: Isso foi mais no começo?

Expressão infartada em Corações Futuristas (1976)

Expressão infartada em Corações Futuristas (1976)

EG: Sim, mas foi o suficiente. Se você pegar o disco que fiz voltando dos Estados Unidos, quando passei lá oito ou nove meses, é um disco chamado Corações Futuristas, e dentro do LP tem a foto de um coração infartado, aberto. Repara. Aquilo ali não é à toa, em Corações Futuristas. Depois de 30 ou 40 anos, formei um grupo no Rio de Janeiro, dos meninos da Proarte, que se dispuseram a fazer um grupo comigo de 17 músicos tocando flauta, saxofone, essas coisas. Eu chamo de Corações Futuristas com uma outra expectativa hoje, não é mais a do coração infartado. Quando eu voltei da França, a primeira coisa que fiz no Brasil foi um disco que tem uma árvore na capa.

PAS: O célebre disco da árvore.

EG: É um disco que ficou sem nome, mas tem um poema do Geraldinho Carneiro sobre queimadas. Aí eu me pergunto: como é que em 1972, 1973 eu tinha consciência disso? Eu morava na Europa, e a crítica contra o Brasil era feroz. E eu percebi, quando cheguei aqui, que tinha muito de verdade. E ao mesmo tempo fiz um disco que tem uma influência europeia muito grande, tem até homenagem a Ravel.  Ou seja, depois disso achei bacana que tivesse feito, porque quando a gente faz uma coisa em homenagem a quem a gente conhece muito a gente está aprendendo. Depois fiz homenagens a João Gilberto, a coisas brasileiras, e fui me voltando, fui parar dentro da floresta amazônica. Eu tenho morado muito mais na floresta amazônica do que na Europa ou nos Estados Unidos.

PAS: Você chegou a morar na floresta?

EG: Eu fui três vezes. A primeira vez fiquei 42 dias morando na aldeia iaualapiti.

Em 1989, Egberto assina a trilha sonora de Kuarup, de Ruy Guerra

Em 1989, Egberto assina a trilha sonora de Kuarup, de Ruy Guerra

PAS: Foi quando fez a trilha para Kuarup, do Ruy Guerra?

EG: Não, bem antes, quando fui fazer um projeto de um filme que seria feito pela Tânia Quaresma. Ela elegeu cinco ou seis músicos brasileiros de que ela gostava muito e fez uma pergunta comum a todos: “Qual é a região do Brasil que melhor pode representar você?”. E eu disse para ela que era o Xingu, porque nessa altura eu lia muito Darcy Ribeiro, irmãos Villas-Bôas, então sabia da existência de um mentor espiritual chamado Sapaim, na aldeia dos iaualapiti, no Alto Xingu. Eu disse: é para lá que eu quero ir. Mas isso eu tinha, sei lá eu, 20 e tal anos. Na época a gente desejava tudo, mas não acreditava que ia dar certo. Passado um mês no máximo a Tânia Quaresma ligou e disse: “Está na hora da vacina”. E todos nós envolvidos fomo para a Praça 15 aqui no Rio fazer a vacina. E o balé Stagium, de São Paulo, foi convidado e topou, todos nós fomos para o Xingu, que é uma maravilha de experiência. Esse filme existe, o balé Stagium se vestindo dentro de um descampado da aldeia iaualapiti, e os índios, que não estavam entendendo bem o que era aquilo, começaram a se preparar para a festa também, se pintando e tal. Quando o Stagium acabou de dançar, eles usaram o mesmo espaço e dançaram também. Foi uma coisa maravilhosa. E eu, que deveria ficar lá uma semana, fiquei 42 dias. A segunda vez eu fui por causa do Ruy Guerra, para fazer o Kuarup, e passei umas três semanas. Aí eu já tinha amigos morando, os kalapalos, os xavantes. E depois, a terceira vez, eu fui por causa do Raoni. E agora, mais recentemente, eu fiz a trilha do filme do Ailton Krenak, que é uma figura maravilhosa, a gente é muito amigo. Então eu diria que quando eu saio do Brasil eu vou para um país melhor, que é o Xingu.

Samba do Escritor (1968), de Dulce Nunes

Samba do Escritor (1968), de Dulce Nunes

 

PAS: Uma das vozes iniciais da sua música era da Dulce Nunes. Por onde ela anda, que é feito de Dulce Nunes?

EG: A Dulce continua sendo uma pessoa próxima demais, que hoje em dia é uma das responsáveis pelas autorizações dadas pela Carmo Produções Artísticas.

PAS: Ela trabalha com você então?

A capa do LP Pobre Menina Rica, de 1964

A capa do LP Pobre Menina Rica, de 1964

EG: Não, ela faz tudo de casa, tranquila. É uma pessoa que sempre esteve do meu lado, me ensinou muito qualidade da vida, e não só isso. Para você ter uma ideia a Dulce fez discos que são marcos da coisa literária no Brasil. É a primeira pessoa que grava músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, quando acaba o disco ela presenteou à Elizeth Cardoso, e a Elizeth fez o tal disco com Tom Jobim inspirada nisso. A Dulce faz a primeira gravação de Pobre Menina Rica, do Carlinhos Lyra e do Vinicius de Moraes, e quando termina entrega na mão da Nara Leão. Estou te contando coisas que já são escritas dentro da biografia dela. A Dulce entrega nas mãos da Maria Bethânia a música Carcará, e convence Bethânia que ela tem que gravar. Tanto que, nos shows da Bethânia no Canecão aqui no Rio que fui e Dulce estava presente, Bethânia do palco parava e dizia: “Eu quero aproveitar para agradecer aquela que me colocou na estrada da música, Dulce Nunes”. É lindo de ver. E sem falar nisso, ela recentemente, há seis meses, disse: “Egberto, você lembra do disco que eu fiz, chamado Samba do Escritor?”. É um disco em que até Carlos Drummond de Andrade está sentado na capa com ela, imagina. Drummond, né? Disse “é claro que lembro”, até porque participo desse disco como arranjador em duas ou três faixas. Ela disse assim: “Eu tenho um presente para te dar. Você lembra que na época você fez arranjos para duas músicas com letras do Guimarães Rosa?”. As músicas eram Adamúbies e O Aloprado. Ela disse: “Pois é, o que eu nunca te falei é que ele me deu dez letras, e autorizou que eu fizesse tudo que quisesse. Eu estou te dando de presente oito letras”. E eu agora estou trabalhando, meu próximo projeto, que tem que ser gratuidade total, é fazer oito músicas e chamar um monte de cantores e cantoras para cada um fazer uma versão, gravando, e disponibilizar tudo para poder falar em Guimarães Rosa.

PAS: Que maravilha. Pode-se dizer que esse será seu próximo disco?

EG: Próximo disco não, porque acho que não vai ter formato de disco, mas meu próximo sonho é esse, que está sendo realizado devagar e que vai chegar à gratuidade. Eu quero demais isso.

PAS: A Dulce parou de cantar, depois de cantar em vários discos seus?

Dulce, o disco de estreia pela Forma em 1965, com músicas de Baden, Jobim e Vinicius

Dulce, o disco de estreia da cantora pela Forma em 1965, com músicas de Baden, Jobim e Vinicius

EG: Parou, chegou uma hora que ela disse: “Não quero mais, pronto”. E ela cantava também, quando penso que ela fez um disco maravilhoso com Baden Powell acompanhando no violão e Guerra Peixe escrevendo para cordas, isso nos anos 1960, eu nem estava aqui no Rio ainda, estava morando em Friburgo. É muito espetacular, uma pessoa muito competente, e competente na amizade, em tudo, dessas pessoas que se a gente tivesse uma meia dúzia de umas 30 dela no Brasil o Brasil estava melhor. É verdade.

PAS: Hoje os festivais dos anos 1960 são vistos como o lugar onde se revelaram dez entre dez grandes artistas da música brasileira que estão aí até hoje, e você é um deles. Como era o clima, como você sentia aquele clima de competição?

No III Fic, de 1968, "O Sonho" aparece na voz de Agostinho dos Santos; a passeata de Geraldo Vandré foi a predileta do público, e o "Sabiá" de  Tom Jobim e Chico Buarque saiu vencedor

No III FIC, de 1968, “O Sonho” aparece na voz de Agostinho dos Santos; o “Caminhando” de Geraldo Vandré foi o predileto do público, e o “Sabiá” de
Tom Jobim e Chico Buarque saiu vencedor

EG: Olha, eu cheguei no Rio de Janeiro, conheci pessoas que são muito mais elas do que eu próprio, responsáveis para que eu entrasse no festival com O Sonho. Cheguei meio desinformado, não sabia de praticamente nada, não sabia bem o que ia fazer da vida. E quando vi, um monte de amigos me empurrando, o Geraldinho Carneiro, que é meu grande parceiro e hoje é imortal na Academia, o pai dele, Geraldo Carneiro, era assessor do Juscelino Kubitschek. Na casa do Geraldão frequentavam todos os poetas, todos os escritores, como bom mineiro que era ele era muito ligado. De formas que de repente estou lá e na casa do Geraldo frequentavam não só Tom Jobim e todos os outros como também Augusto Marzagão, que era diretor do Festival Internacional da Canção. E por conta disso disseram para mim: “Não, menino, faz uma fita aí, bota uma música aí no seu gravador cassete”. Eu escrevi e, por uma razão ou por outra, a música foi selecionada e, pronto, comecei minha vida profissional assim.

PAS: Sérgio Ricardo é um que fala que aquele clima de competição era horrível, que ele não se adaptou. Alguns se adaptaram melhor do que outros?

EG: Eu não sentia esse clima, não. Eu sentia muito divertido. Mas também, 20 anos, né? Imagina, com 20 anos, chega de Friburgo, escreve um arranjo para a orquestra OSB, a Orquestra Sinfônica Brasileira, para tocar a música para 15 mil pessoas no Maracanãzinho.

PAS: Eram cem músicos na orquestra?

EG: Devia ter uns 60 ou 70. Mas foi a possibilidade de chegar, e a primeira coisa profissional que fiz foi colocar em prática o que eu tinha estudado na teoria. Eu tinha estudado isso, escrever para orquestra, tudo isso eu já tinha estudado. E claro que não tinha prática, mas fui aprendendo. Então eu nunca senti essa coisa de competição, não, pelo contrário. Aquilo ali é que me movia. Fazia arranjo, não dava certo, procurava um arranjador para ajudar, ele dava uma opinião, discutia, uma coisa muito viva. Claro que o Sérgio deve ter suas razões para achar que a competição era horrorosa.

PAS: Ele é o célebre cara que quebrou o violão…

EG: Eu sei que ele é, eu sei. Tanto que eu não ganhei o festival, sequer fui classificado, e quando terminou o festival fui convidado, essa é a coisa mais louca que existe. Eu tinha participado da parte nacional, não fui classificado. Aí tinha a parte internacional na semana seguinte, e muita gente que participava, inclusive arranjadores como Henry Mancini, Radamés Gnattali, uma série deles, brasileiros e Henry Mancini, que estava no Brasil, bateram o pé e fizeram um movimento tão bacana que fui convidado a ser jurado da parte internacional. Eu, que não tinha me classificado, não tinha recebido prêmio nenhum. E em seguida, quando termina o festival, a Marie Lanforêt, que tinha vindo como convidada, me encontra e diz: “Eu quero que você vá escrever arranjos para mim na França”. E aí eu fui, sem experiência nenhuma. Fui adquirindo experiência na prática, e pronto, acabou. Foi isso.

Circense, de 1980

A janela vira cortina em Circense, de 1980

PAS: Tem uma série de referências na sua música, Circense, Palhaço, Sanfona, que apontam para uma coisa cigana em você ou na sua música, ou não sei se em ambos – uma coisa nômade, e aí voltamos para os seus pais chegando no Carmo.

EG: Tem uma coisa cigana mesmo, tem sim. Aliás, de todos os filmes de que participei um dos que me deixou mais emocionado está dentro das três fábulas, dos ês filmes que fiz sobre fábulas do García Márquez, que é o Candida Erêndira, que conta a história de uma cigana.

PAS: Também de Ruy Guerra.

EG: Eu tenho uma relação absoluta com essa coisa nômade, de vai para lá, vem para cá, fica não sei onde, fala outra língua. É uma confusão danada. Eu fui chamado pelo meu pai a vida inteira de “minha filho”, por causa dos árabes que trocam os artigos, por causa dos franceses e tal, de forma que vivi muito isso. Vivi a vida inteira com uma educação que a gente tinha que aprender a lavar, cozinhar, passar e fazer conta com 5, 6, 7, 10 anos de idade. Isso é coisa meio de nômade, né?, que as crianças têm que participar de tudo, saber de tudo.

PAS: E a música também é nômade por natureza…

EG: Também, claro. É isso aí.

Sempre em busca de liberdade, a Dança dos Escravos, de 1989

Sempre em busca de liberdade, a Dança dos Escravos, de 1989

(Entrevista publicada originalmente, em versão resumida, na edição 990 da revista CartaCapital.)

A voz do morto sussurra

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Não sabemos bem qual é, mas deve haver um fio narrativo unindo as obras do cineasta carioca Eduardo Ades, que coloca em cartaz agora seu segundo documentário em longa-metragem, Torquato Neto – Todas as Horas do Fim, dirigido em dupla com o produtor musical também carioca Marcus Fernando. O primeiro filme foi Crônica da Demolição (2015), sobre a ascensão e queda do mitológico Palácio Monroe, no centro do Rio de Janeiro. O terceiro, já filmado e em processo de montagem, proseará sobre o desastre ambiental provocado pela Samarco (etc.) nas Minas Gerais.

Por ora, imerso em momento histórico que apresenta mais armas de destruição que de construção, Eduardo fala sobre a ascensão e queda, a demolição, a implosão, a ruptura de barragem, o suicídio do poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972), cujo bebê mais garboso e espetaculoso (a tropicália) completa 50 anos por estes tempos. (Leia resenha sobre Todas as Horas do Fim na edição 994 da revista CartaCapital, nas bancas e plataformas digitais a partir de sexta-feira 9 de março.)

Torquato Neto (1944-1972) - foto João Rodolfo do Prado/Divulgação

Torquato Neto (1944-1972) – foto João Rodolfo do Prado/Divulgação

Pedro Alexandre Sanches: Pode contar um pouco sobre sua trajetória no cinema até aqui?

Eduardo Ades: Já tinha produzido alguns curtas, e, na minha produtora (Imagem-Tempo, criada há 14 anos), meu primeiro filme como diretor foi A Dama do Estácio, uma homenagem a A Falecida (peça teatral de Nelson Rodrigues), com música de Noel Rosa e com Fernanda MontenegroNelson Xavier Joel Barcellos. E o primeiro longa-metragem como diretor foi Crônica da Demolição (2015). Também produzi Yorimatã (2016, documentário de Rafael Saar sobre as compositoras e cantoras Luhli Lucina) e Morro dos Prazeres (2013, documentário de Maria Augusta Ramos, também diretora do novo O Processo, sobre a deposição da presidenta Dilma Rousseff).

PAS: Você tem uma ligação especial com música, ou é impressão.

EA: Eu tenho. Não sei, na verdade a ideia de fazer A Dama do Estácio veio de uma música, “O X do Problema” (1936), do Noel. Aquela música me remetia à A Falecida. Comecei a juntar as coisas, as referências, e escrevi aquele roteiro.

PAS: A Dama do Estácio remete também à Aracy de Almeida (que na realidade era dita “a dama do Encantado”), não?

EA: Isso, a interpretação da música é dela. A gente bota a versão dela cantando. Está no YouTube, esse a gente liberou.

PAS: Qual é a participação do codiretor de Todas as Horas do Fim, Marcus Fernando?

EA: A gente é diretor junto, igual. Na verdade a ideia surgiu do Marcus, foi ele que se interessou por fazer um filme sobre Torquato Neto. Quando ele me trouxe a ideia me interessei de cara, porque era um nome que eu conhecia de músicas que admirava muito, só que eu não sabia nada sobre esse cara. Sabia de algumas informações esparsas. Participou da tropicália. Aquela música “Pra Dizer Adeus” que não é tropicália é dele também (em parceria com Edu Lobo, que a entregou a Elis Regina em 1966 e simultaneamente a gravou em dupla com Maria Bethânia). “Go Back” (1988) dos Titãs, “Let’s Play That” (1972) do Jards Macalé, tinha letras muito poderosas.

É a história de um suicídio muito precoce, com 28 anos. Quem foi esse cara? Foi aos poucos, fazendo o filme que fui conhecer um pouco mais do que ele tinha feito. Acho que isso é mais ou menos o que a maior parte dos espectadores do filme conhece do Torquato. É um nome que aparece em vários lugares, a gente já ouviu Caetano Veloso citar, Gilberto Gil citar, alguém mais citar. A gente conhece o nome na capa do disco, mas não sabe mais profundamente o que ele fez, quem ele foi. Eu também era um pouco essa pessoa que me interessava em conhecer mais.

Na capa do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis (1968), Torquato é o James Dean à direita de Gal Costa

Na capa do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis (1968), Torquato é o James Dean à direita de Gal Costa

PAS: Quer dizer, você foi atrás para você próprio se aprofundar no personagem?

EA: Foi, o interesse era esse, de conhecer, achar que esse cara realmente deve valer conhecer. Porque o que aparecia dele para mim era sempre muito interessante, então certamente não vai dar um filme ruim.

PAS: Voltando atrás um minuto, e o Palácio Monroe? Por que virou seu primeiro tema para um longa-metragem?

EA: Também não foi uma ideia minha, foi uma ideia de um amigo meu, José Eduardo Limongi, que é o diretor de fotografia do filme. Tem até um pouco a ver com o Torquato, é uma história mítica que não se conhece muito bem, um monte de gente fala um monte de coisa, tem uma certa aura. Para a população carioca, o Palácio Monroe faz parte das mitologias da cidade. Eu sou carioca, mas o José Eduardo é paulista, mora aqui no Rio há muitos anos, e só foi encontrar essa história e ouvir falar dela já mais velho. Ele não se relacionou com isso como um mito, mas como uma história que estava mal contada.

Ele não se conformou com as hipóteses todas que botavam na internet, os boatos, achou que tinha um assunto ali. Tem um monte de boatos, um monte de hipóteses, e vai ficar por isso mesmo? Ninguém até hoje sabe por que demoliram? E aí ele ter ficado instigado com isso também me instigou a procurar saber mais sobre a história do palhaço.

PAS: É muito legal que você acaba de fazer um paralelo entre o Palácio Monroe e o Torquato Neto. Na sua cabeça existe esse paralelo então?

EA: (Ri.) Não, acho que foi uma coisa casual, que pensei agora.

PAS: Mas faz todo sentido, você sabe. Você está investigando figuras e histórias sobre as quais existem boatos e versões.

EA: É, e de alguma forma são coisas… Coisas não, pessoas, uma pessoa e um…

PAS: Um edifício.

EA: …Um monumento, que representam muitas coisas e foram extintos, um pela morte, outro pela demolição, num mesmo período. Acabam remetendo até mesmo à mesma época.

PAS: E isso diz respeito à você de alguma maneira? Cruza com a sua vida?

EA: (Silêncio.) Não. Inclusive nem foi uma época que vivi.

PAS: Quantos anos você tem?

EA: Tenho 36 anos. (Silêncio.) Não sei, não sei dizer. Acho que essas questões da morte e das destruições… Isso eu já tinha percebido que os dois filmes trazem muito em comum. É até uma fala que tem no final de Crônica da Demolição: construir e destruir faz parte da natureza humana. A gente também é feito disso.

PAS: É uma frase que Gil usa de outra maneira no filme… (Gil foi parceiro de Torquato em canções como “Minha Senhora” e “Vento de Maio” – essa lançada por Wilson Simonal , de 1966, “Rancho da Rosa Encarnada” – também assinada por Geraldo Vandré -, “Louvação”, “Zabelê”, de 1967,  “Domingou”, “Marginália II”, “Geleia Geral” e “A Coisa Mais Linda Que Existe”, de 1968. O ex-parceiro aparece em Todas as Horas do Fim explicando o afastamento entre ambos como fato “natural” da “vida que constrói e destrói”.)

EA: Pois é, o Gil usa isso, e a gente perseguiu também essa noção no Torquato. A gente percebeu quanto a morte era um dos sentimentos mais vitais da vida dele. No Torquato não há contradição entre vida e morte. Não é assim, “a morte é o fim da vida”, não, a morte faz parte da vida o tempo inteiro. A postura dele de transgressão é posta nessas mortes. Transgredir é também querer matar certas coisas, seja a norma convencional ou seja a si próprio. Ele está sempre se transgredindo, vamos jogar fora o que estávamos fazendoantes e agora vamos nos dedicar a outra coisa. A gente já tinha percebido que essa fala da Crônica da Demolição ecoava também no Torquato.

PAS: Não sou nada especialista em cinema, mas queria conversar um pouco sobre linguagem cinematográfica. Acho que também dá para fazer um paralelo com Torquato, vocês usam uma linguagem que me pareceu original, na forma de usar os depoimentos presentes. Por que é assim?

EA: Não foi uma coisa pré-concebida. Foi algo que foi surgindo ao longo do processo. A gente tinha feito as entrevistas de um jeito mais clássico, os entrevistados falando para a câmera. E na montagem do filme, em determinado momento, a gente percebeu que esses personagens estavam roubando muito a atenção do Torquato. A gente estava querendo chegar mais, achava que o Torquato tinha que aparecer mais. A gente tinha que sentir o torquato, e não estava sentindo. Percebemos que queríamos o Torquato protagonista, não o Torquato assunto. É uma opção que vem desde o princípio do projeto, não vamos entrevistar nenhum especialista, pessoas que não conheceram ele. Então isso já era uma coisa que a gente perseguia, e na montagem, mesmo que estivéssemos só com entrevistas de pessoas que conheceram e podiam falar do Torquato em primeira pessoa, mesmo assim ele ainda estava um pouco assunto. E aí percebemos que a força das entrevistas, com as pessoas podendo falar e olhando para a câmera, roubava a atenção do Torquato. Especialmente Caetano, Gil, Tom Zé, que têm uma presença muito forte. Os caras aparecem e você fica ligado no que eles estão falando, na cara deles, na expressão deles. Então optamos em deixar esses caras coadjuvantes, se Torquato não aparece falando para a câmera, se esse material não existe, as outras pessoas são coadjuvantes do filme dele, então elas também não podem aparecer dessa forma. E aí optamos por manter a fala deles, mas tirar toda a imagem dessas entrevistas e recriá-las, reimaginá-las, criar outra imagem para elas, a partir de referências visuais do Torquato. Ele era muito ligado em cinema, então são as imagens do cinema novo, do cinema marginal, imagens que povoavam o imaginário da época, especialmente para o Torquato, que era fissurado em cinema e estava muito ligado no que estava acontecendo.

PAS: Mas, somando a isso que você está explicando, ao mesmo tempo que trazem Torquato para o presente com os textos dele, vocês envelhecem as imagens dos caras que ainda estão vivos. Vocês não só tornam eles coadjuvantes do filme como levam eles para o passado, de alguma maneira. Por que envelhecer as imagens deles?

EA: É, na verdade isso a gente já tinha feito também na filmagem. Fizemos a filmagem com 5K, uma coisa linda, mas a gente sabia que ia dar um choque essa imagem digital de hoje, com ultrarresolução, e a imagem dos filmes da época. Então levamos para as filmagens uma câmera de super 8, e fazíamos planos da entrevista com essa câmera, para poder suavizar essa diferença. Esses planinhos iam servir como inserts, para jogar um pouco os dias de hoje com a estética da época, que era muito utilizada – Torquato era fissurado no formato super 8. E no final acabou que só o que sobrou foi esse super 8, a gente tirou toda a imagem digital que fez deles e manteve só o super 8, que é a estética daquele período.

PAS: Quer dizer que vai ficar inédito o material de imagem deles falando e dando os depoimentos hoje?

EA: É, isso. A gente apresenta rapidamente cada um com o planinho de super 8. E abre a compreensão também para o imaginário daquele período, abre nossa percepção. O filme fica um pouco mais sensorial. Ele instiga mais a imaginação, né?

PAS: Um momento de choque para mim no filme é a aparição do Moreira Franco como amigo de infância do Torquato. Ele, com aquela imagem envelhecida, dá um curto-circuito total. Como foi botar o “Gato Angorá” no filme?

EA: (Ri.) Pois é. Isso foi uma coisa que a gente descobriu na pesquisa, que o Torquato e o Moreira Franco eram amigos de infância. E eram mesmo, o Torquato tem até um poema que cita lá “Wellington Moreira Franco, meu primeiro amigo”. Eles também tinham essa parceria, eram muito próximos, muito próximos. E acaba que o Moreira tanto traz uma informação sobre a infância dos dois, como cria esse choque, de você pensar como é que a vida encaminhou esses dois amigos de rua, vizinhos de rua, para destinos tão diferentes. É até uma frase acho que do Paulo Leminski, não sei se vou citar corretamente agora, olha as formas que a vida pode tomar. São formas de vida muito radicalmente opostas que saem de uma parceria tão estreita na infância.

PAS: Comentei isso com o amigo jornalista Jotabê Medeiros, ele também levou um susto e falou: “Mas Moreira Franco é carioca”. Fui checar, o cara nasceu no Piauí mesmo, a gente nem estava ligado.

EA: (Ri.) Pois é, ele acabou sendo governador do Rio.

PAS: É uma figura central da política do Rio, com intervenção militar e tudo. Traz uma atualidade muito grande para o filme.

EA: Exatamente.

PAS: Gostei imensamente do filme, mas escrevi um texto para a CartaCapital em que faço duas ressalvas ao filme, espero que respeitosas. A primeira é que a participação feminina no filme é pequena. Tem aquela madrinha, tem uma fala da (viúvaAna Duarte, mas em geral são os homens falando do Torquato. Não tem Gal CostaRita Lee, sei lá mais quem poderia aparecer. O filme não ficou muito centrado no mundo masculino talvez? Qual era o lado feminino do Torquato?

EA: Sim, é, Zé Celso Martinez Corrêa disse “Torquato também era mulher, esse filme também é mulher”. Não, mas realmente isso acontece…

PAS: É lindo o momento em que Gal aparece cantando “Mamãe Coragem” (uma das três parcerias Torquato-Caetano em 1968, além de “Deus Vos Salve Esta Casa Santa”, gravada por Nara Leão, e “Ai de Mim, Copacabana”), mas vocês tentaram falar com ela?

EA: Houve problemas de agendas com algumas pessoas. Muitas entrevistas, inclusive de parceiros importantes, também não entraram na hora da montagem. Não tem o Jards, por exemplo, mas ele aparece em três músicas, abrindo e fechando o filme, tocando com a Gal. A Gal aparece cantando, mas não tem ela falando, por problema de agenda. Mas, de qualquer forma, era também um mundo que era muito masculino. Os principais parceiros e amigos dele eram homens. É uma coisa que tem um limite, onde a gente consegue escapar disso dentro da temática?

PAS: Mas houve uma seleção de quem foi ouvido ou não, ou foi questão circunstancial? Macalé e Gal não falaram porque vocês não quiseram ou porque não deu?

EA: É, não deu. Na verdade o Macalé falou, a gente conseguiu gravar com ele. A Gal a gente não conseguiu.

PAS: Se entrasse todo mundo daria um filme de quatro horas?

EA: Mais da metade das entrevistas que a gente fez a gente não conseguiu incluir no filme…

PAS: É mesmo? Isso vai ficar inédito?

EA: Não sei, acho que não, né? O pessoal da televisão (o Canal Brasil é coprodutor do documentário) falou em fazer alguma coisa com o material, porque tem tanto…

PAS: Outra sensação que o filme me passa é que tem muita declaração inédita, muita surpresa. Isso vale também para o que vocês escolhem destacar da dele próprio (no filme poemas e textos de Torquato são interpretados com talento pelo ator Jesuíta Barbosa), coisas que eu nunca tinha ouvido ou estava esquecido. Que frases dele e que participantes da vida dele colocar são opções de vocês também…

EA: Isso tem muito a ver com a linha narrativa que a gente propõe. A gente acaba não fazendo uma biografia num sentido mais estrito, não estamos querendo narrar uma sucessão de fatos. O objetivo principal é criar um personagem forte. E a gente percebeu que o que nos interessava mais nesse personagem era a relação dele com a morte, uma relação vital com a morte. E aí a seleção de textos é um pouco em função disso. Na verdade veio dele isso, o que mais me marcou na produção dele – que é gigantesca, tem aqueles dois volumes organizados pelo Paulo Roberto PiresTorquatália. A gente foi percebendo como a produção dele é intensa, grande e marcada pela presença da questão da morte. A gente percebeu que realmente isso batia muito fundo nele, não só pelo fato simplesmente de ele ter se suicidado. Ele ter feito tantas revoluções é uma pulsão de morte. A gente organiza o filme para construir esse personagem, essa noção de que ele está sempre se matando e se reinventando como outra pessoa. E a gente organiza as entrevistas em torno desse tema também. A gente não vai ficar narrando fatos, o que a gente mais quer é entender como essas pessoas viram o que aconteceu com a vida dele, que não expliquem, mas ajudem a contar a história desse personagem dentro desse viés.

PAS: A minha segunda ressalva, que é ligada à primeira, e é uma pergunta que lhe faço, é por que vocês não enfrentam a questão da sexualidade de Torquato Neto.

EA: Pois é, o Torquato é o principal protagonista, a gente queria que ele fosse protagonista. E a gente queria que ele falasse, os temas que a gente traz são os temas que ele abordou na sua produção artística. E esse é um tema que surge depois, cercado de um monte de boato, um certo sensacionalismo. Ele não registrou isso em nenhum lugar, sabe? Não registrou em texto, a gente vai ficar falando por ele o que ele sequer falou? Isso caberia a ele, se ele quisesse ter dito, ou se ele quisesse ter registrado.

PAS: Mas também se ele pudesse, na época dele. Talvez fosse trancado ali.

EA: É, acho que fazia parte do contexto da época. O Jorge Salomão fala ali que era um momento de liberação sexual, a gente entende que o contexto daquela época envolvia isso. Mas a gente ficar falando por ele sobre esse assunto, eu achava que era, sei lá, uma coisa um pouco invasiva, sabe? E principalmente por conta disto, a gente resolveu que ele era o protagonista do filme. A gente não pode inventar um texto para ele falar sobre este assunto, ou ter um assunto sobre o qual todo mundo fala, menos ele. Ia ficar uma coisa meio estranho. Acho que faz parte do contexto da época, quem conhece o contexto sabe que eles viviam essa liberação sexual, é falado sobre isso no filme. Mas o que isso significa, e tal, a gente não entra lá na questão… Se ele não botou em texto não tem como a gente falar. Só estamos falando das coisas que ele deixou registradas.

PAS: Entendi a resposta, de alguma maneira você está dizendo que foi ele que escolheu o que seria e o que não seria? É mais ou menos uma reverência ao personagem talvez?

EA: Não, foi a gente que escolheu. É uma escolha nossa pelo fato de que a gente escolheu que o Torquato é protagonista do filme. Como não posso inventar uma cena, uma sequência, um texto, como ele ia aparecer nessa cena? Um protagonista que não fala, sobre o qual os outros falam? É uma escolha nossa. Ele não deixou registrado isso em texto, vou começar a fazer conjecturas sobre essa questão? Tem depoimentos de terceiros, começa a ficar muito sensacionalista. Ele nunca se declarou bissexual, homossexual, qualquer coisa do tipo. Por exemplo, ele marca muito fortemente a relação intensa que tinha com a Ana. Isso está no filme. Aí tem todo um sensacionalismo que vem da biografia, Caetano vai negar, não interessava para a gente chegar nesse sensacionalismo. Inclusive ele não marcou essa angústia em lugar nenhum, então a gente deixou fora, não cabia a gente ficar falando. É invadir um espaço que não é nosso, né?

PAS: Há alguma outra coisa que vocês tenham deixado de fora por esse motivo? Não sei se eu devia perguntar isso…

EA: Não sei. Na verdade tudo que ele não registrou a gente não consegue abordar no filme. Tem um pouco isso. Mas tem muitos outros aspectos da vida dele que também estão de fora porque simplesmente não cabe, uma vida não cabe em uma hora e meia.

PAS: Eu perguntei sem pensar, mas política seria uma dessas coisas? Também não é tão nítido necessariamente pelos textos qual era a posição política dele.

EA: Com relação à política, a atmosfera política está impressa nos textos dele, né? Tem aquele texto “agora não se fala mais, toda palavra agora é uma cilada”… Tem um comentário direto ali sobre o que está acontecendo na atmosfera do AI-5.

PAS: E é fortíssimo, né?

EA: É. Você entende tudo. Mas ele não tece comentários sobre o que está acontecendo no Palácio do Planalto. Isso nunca aconteceu nos textos dele. Tem coisas que aparecem no texto que a gente não coloca também, a discussão sobre direito autoral, questões que a gente achou que não valia a pena abordar. Até porque no âmbito da própria poesia tem uma enorme quantidade de textos muito potentes que também não cabem na duração que a gente tem.

PAS: Sua resposta me instiga, fico pensando. Por que ele se matou? Isso também não deve estar nos textos, então não deve ter sido objetivo de vocês investigar? Ou você acha que está lá de alguma maneira?

EA: Não, a gente não quis investigar isso. Ele deixa, né?, uma carta de suicídio, é o último texto do filme. É um ato muito extremo, na verdade a gente começa o filme falando sobre isso. A linguagem não pode dar sentido neste ato. Tem um mistério. E, como ele é protagonista do filme realmente, depois que ele faz isso acabou o filme. Morreu o protagonista e acabou. Por que eu vou ficar tecendo considerações sobre o que foi, por que aquele ato. A gente tem que entrar na sensibilidade dele, no imaginário dele, é ao que o filme se propõe. Entrar na potência da poesia dele, na potência com que ele viveu a própria vida também. Mas entrar nisso de ficar esmiuçando as razões para um suicídio, isso nos pareceu descabido. O que ele deixou para falar sobre o suicídio foi aquela carta, e pronto. Com essa carta a gente fica no fim do filme.

PAS: Aí então você fez dois filmes diferentes, e investigar por que o Palácio Monroe foi demolido é diferente de investigar por que o Torquato Neto morreu. Aí acaba o paralelo entre os dois?

EA: É, sem dúvida. Cada filme tem sua própria temática, que vai se apresentar em diferentes abordagens, tanto formais como no desenvolvimento da narrativa.

PAS: Desculpa, eu estou pirando aqui, mas eu queria saber por que Torquato Neto foi demolido… E acho inclusive que o filme ajuda nisso, sim.

EA: É, a gente entende, né?, mas a gente não explica. A gente sai do cinema entendendo um pouco. Era uma coisa muito clara ao longo do processo todo, inclusive o nome do filme, Todas as Horas do Fim, esse é o último verso do poema “Cogito”, ou “cógito”. É, digamos, um poema existencial cartesiano. Descartes fala “penso, logo existo”, o “cogito” do Torquato de várias formas ele vai descrevendo, e no final ele fala: “Eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo tranquilamente/ todas as horas do fim”. Essa percepção de que a vida para ele eram todas as horas do fim, e que ele vive isso com tranquilidade, nos norteou para entender que a morte faz parte da vida dele inteira, como fonte vital. Em algum momento ela acaba virando, é um jogo muito arriscado, porque ele não vive isso só conceitualmente. A gente está falando conceitualmente, mas ele vivia isso de uma maneira muito sensível, e perigosa, desde algumas tentativas de suicídio. Isso era uma pulsão que estava ali. Uma hora esse jogo pendeu para um lado que era irreversível. Podia também não ter pendido. É por isso que tem um perigo, é daí, dessa pulsão de morte, que vem a intensidade com que ele viveu a vida dele. Por isso acaba o filme entendendo por que ele se mata – entendendo, mas não explicando, por que especificamente naquele dia, o que aconteceu naquele dia. Não, isso não tem explicação. Não dá para explicar o que estava acontecendo na vida dele naquele dia, isso é o real, um ato muito extremo que não dá para ser sintetizado em duas, três, cinco, dez ou 20 frases. É um mistério.

PAS: Mas você, com o mergulho que deu nele, na obra dele, arriscaria uma interpretação sua de por que Torquato é a parte da tropicália que morre primeiro, e tão cedo?

EA: Acho que não é relação com a tropicália, tem a ver com a maneira como ele viveu a vida, com a psique dele. Ele era um cara mais atormentado, tinha essa relação muito direta e umbilical com a morte.

PAS: É para lá da tropicália, não se restringe a ela?

EA: Não, não se restringe a ela. Ele morre cedo porque realmente ele teve essa relação de proximidade com a morte ao longo da vida dele inteira. Acabou entrando numa relação muito arriscada e perigosa. Se tivesse sido um pouquinho mais prudente, tivesse pegado um pouquinho mais leve… Mas a gente não pode julgar, a gente não sabe, né?

PAS: Não. Talvez fosse o que ele queria, e pronto. Senão poderia ser ele o “Gato Angorá” de Michel Temer de hoje em dia…

EA: Imagina.

PAS: Estou só elucubrando…

EA: É, loucura.

PAS: Para terminar, você tem um próximo projeto já? Pode falar qual seria?

EA: Estou fazendo um documentário sobre a tragédia da Samarco em Mariana (MG).

PAS: Sério? Que demais, olha só os temas que o cara escolhe. Tem um fio narrativo, vai.

EA: (Ri.) Pois é, esse é o próximo. Estamos no início do processo de montagem. Ainda demora, porque tem muito material filmado, vai ser um processo um pouquinho longo. Mas espero que ano que vem esteja pronto.

PAS: Mas então você já foi lá, já filmou e tudo?

EA: Já. Fiquei um ano filmando. A gente está focado principalmente na relação da população com a empresa, com o Ministério Público, na reparação dos direitos das pessoas atingidas.

Suicidado, o Rio Doce  deságua intoxicado em oceano.

Suicidado por ninguém, o Rio Doce deságua intoxicado em oceano

Joyce, musa de si mesma

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Aos 70 anos, Joyce reproduz a imagem de capa do álbum der estréia, quando tinha 20 - foto Leo Aversa/divulgação

Aos 70 anos, Joyce reproduz a imagem de capa do álbum de estréia, quando tinha 20 – foto Leo Aversa/divulgação

Joyce Moreno nasceu de “produção independente” em 1948, 40 anos antes de a conservadora sociedade brasileira considerar aceitável um dado como esse para uma mulher. Aos 20, no ano do AI-5, estreou em LP solo de compositora que hoje seria assimilado sem grandes traumas como “feminista” (palavra rara no Brasil de 1968). Ali, a jovem educada em colégios católicos chamava homem de “meu homem” e “meu moreno”, dizia que não desejava sustentar marido, seduzia quem quisesse com a liberdade de que o país institucional não desfrutava.

A compositora carioca, hoje com 70 anos, acaba de regravar na íntegra, pelo selo nacional Biscoito Fino, aquele simplesmente Joyce de 1968, agora sob o título 50. É um comentário de musa de si mesma, que se homenageia em vez de esperar que alguém mais o faça, mas é muito mais que apenas isso. O violão, o canto, as letras e a fala de Joyce Moreno comunicam muito a um país ainda golpeado pela destituição de sua primeira presidenta da República. Ao repertório juvenil, a artista acrescenta duas canções inéditas que comentam em profundidade lancinante esses 50 anos de túnel dos tempos. São elas “Com o Tempo”, parceria 100% feminina com Zélia Duncan, em que afirma que “com o tempo/ fui ficando mais moça/ mais olhos, menos onça”, e “A Velha Maluca”, na qual reivindica, sozinha, um próximo passo de emancipação da condição feminina, o das idades mais avançadas. “No dia em que ficou velha, a moça ficou contente/ pra ela era indiferente/ foi bom pra se libertar/ da escravidão da beleza, do empenho em viver bonita e ser/ a velha esquisita, maluca de arrepiar”, canta em “A Velha Maluca”.

“Tem hora que acho que ficar velha é uma coisa sensacional, porque começam as pessoas a valorizar um monte de coisa que você fez lá atrás e ninguém dava a mínima”, avalia a senhora auto-musa. “As pessoas falam ‘Joyce é uma compositora do nível de um fulano de tal’, e aí falam dos grandes nomes da MPB. É engraçado isso, porque, né?, durante esses anos todos nem os meus colegas se davam conta disso. Porque eu não fazia concorrência com ninguém, porque eu era uma menina no mundo dos meninos, brincando no playground dos meninos.”

Acompanhe abaixo, em vídeo e/ou em transcrição de texto, a íntegra da entrevista da compositora que desbrava há meio século um ambiente masculinamente inóspito, concedida em 7 de julho de 2018 para fundamentar reportagem da edição 1.016 da revista CartaCapital. Joyce falou em lugar pomposo, o centro do palco do Sesc Belenzinho, em São Paulo, onde poucas horas depois faria o primeiro show paulistano de 50. Ensaiando no mesmo território e convidado a participar, o companheiro e parceiro de mais de quatro décadas Tutty Moreno, baterista mundialmente consagrado, preferiu se esgueirar para os bastidores e deixar a companheira ocupando com exclusividade o “lugar de fala” que há 50 anos não cessa de gentilmente reivindicar.

(No vídeo, foram perdidos os primeiros minutos da entrevista – a janela está reproduzida abaixo, no ponto da conversa onde começa a gravação.)

 

Pedro Alexandre Sanches: Depois de 50 anos você regrava o primeiro disco da sua carreira. Por que lembrar de quando tinha 20 anos?

"Joyce", de 1968

“Joyce”, de 1968

Joyce Moreno: Porque eu gosto desse repertório e queria fazer, primeiro, como uma cantora melhor, e segundo, porque essa cantora melhor tem ideias que aquela de 20 anos ainda não sabia que ia ter e nem tinha como realizar. Era um disco de iniciante, uma outra situação. Não tinha o poder que hoje tem, pra colocar suas ideias e tudo mais.

PAS: O disco começava e agora começa com “Não Muda Não”, uma canção sua, em que você está falando com um namorado, dizendo “não quero arranjar marido”, “não quero te mudar”. Que significavam esses versos há 50 anos e que significam hoje?

JM: Na verdade eu fiz até antes, fiz com 18 anos. Eu vinha do colégio católico e estudava na PUC. Saí de colégio de freira pra universidade católica também, onde as meninas da minha geração, as garotas de Ipanema, eram preparadas pra ser exatamente essa coisinha, essa coisa toda minha que ninguém mais pode ser, pra casar e ter aquela função na vida. E eu já sabia que não era isso que eu queria. Até posso ter passado por isso em alguns momentos, mas não era realmente o que eu queria fazer quando eu tinha 18 anos. Essa música não é pra nenhum namorado em especial, mas é uma declaração de princípios de uma menina bem marrenta (ri).

PAS: Uma declaração que não era tão em voga.

JM: Nem um pouco.

PAS: E hoje é.

JM: É, quer dizer, 50 anos depois, é aquela famosa fórmula matemática, como queríamos demonstrar.

Joyce Moreno, "50", 2018

Joyce Moreno, “50”, 2018

PAS: Você sente que demorou 50 anos, ou quase isso, pra conseguir demonstrar?

JM: Acho que demorou 50, sim, porque aquela onda feminista de 1979, 1980 ainda era uma outra coisa. Não era isto ainda que é hoje. Tem essa palavra que eu acho horrorosa, empoderamento – acho muito feia, porque é um anglicismo desnecessário, mas o sentido dela é muito legal, que é o sentido de você tomar a rédea da sua vida. É uma coisa simples assim.

PAS: E ali você assinava como apenas Joyce, e todas eram Joyce, Joanna, Simone, Marina

Regina Duarte comandou o elenco musical feminino do especial "Mulher 80", fundado na trilha sonora do seriado "Malu Mulher" (1979), pautado pelo levante feminista de então, a bordo da oficialização do divórcio no Brasil; Joyce participava como compositora, assinando "Feminina", interpretada pelo Quarteto em Cy

Regina Duarte comandou o elenco musical feminino do especial “Mulher 80″, fundado na trilha sonora do seriado “Malu Mulher” (1979), pautado pelo levante feminista de então, a bordo da oficialização do divórcio no Brasil; Joyce participava como compositora, assinando “Feminina”, interpretada pelo Quarteto em Cy; na foto estão Elis Regina, Simone, Gal Costa, Maria Bethânia, Rita Lee, Fafá de Belém, Regina Duarte, Marina Lima, Zezé Motta, Joanna e o Quarteto em Cy

JM: Mas isso já em 1979. Eu estreei como Joyce em 1968, aquele ano que não acaba nunca.

PAS: Acho curioso que as mulheres não tinham sobrenome na música popular brasileira.

JM: Não tinham sobrenome. Isso realmente, tirando um ou outro homem – Lenine, Djavan, eles também não têm sobrenome.

PAS: E Gal Costa tinha, mas a maioria das mulheres, não.

JM: Acho que no meu caso é como o de Lenine e Djavan, nome raro. Joanna existe, Simone existe. Joyce, naquela época, não tinha ninguém. Agora tem um monte. Eu fiz o teste do IBGE pra ver, descobri “Clareana” acontece em 1980 e em 1981 tem um boom de pessoas chamadas Joyce acontecendo no Brasil. É engraçado isso.

PAS: Ali não existia Google. Quando passa a existir, todas as Joyces viram uma só.

JM: Pois é, exatamente.

PAS: Se escreve Joyce aparece o James Joyce.

JM: É, ele é o mais famoso de todos, né?

PAS: É uma pergunta boba essa do nome sem sobrenome, mas estou querendo avizinhar essas questões da feminilidade mesmo, e de ter ou não ter marido. As mulheres tomavam e ainda tomam o sobrenome do marido. Você é casada com Tutty Moreno.

JM: Mas olha, eu tomei o sobrenome do marido por vontade própria mesmo, foi uma escolha minha, depois de 24 anos de convivência.

PAS: E se fosse o seu mesmo, como seria?

JM: Joyce Silveira Palhano de Jesus. É um nome muito grande, aquela tradição portuguesa daqueles nomes enormes, sendo que não era nem meu sobrenome, porque o meu nome verdadeiro era para ser outro. Porque eu sou filha de produção independente. Meu pai de verdade era dinamarquês. Seria um outro sobrenome se houvesse divórcio na época que minha mãe encarou a barra toda que encarou para me ter sozinha depois de um relacionamento que durou relativamente pouco. Então, como não havia divórcio no Brasil em 1948, ela assumiu, de comum acordo com o ex-marido, o primeiro marido, que eu seria registrada como filha dele. Ele mesmo se ofereceu pra isso, porque havia toda uma situação, de ter deixado ela com dois filhos, ter ido embora com outra mulher. Tinha toda uma situação meio de culpa, e aí fiquei com esse sobrenome. Então sobrenome pra mim realmente não queria dizer nada, absolutamente nada.

PAS: Esse era até um motivo pra ser só Joyce?

JM: É. Aí veio o Google. E veio um monte de Joyce no mundo. E achei que seria legal aceitar o pedido que meu companheiro já vinha fazendo havia muitos anos, “vamos casar, vamos assinar o contrato”. Aí finalmente a gente resolveu fazer isso, depois de 24 anos.

PAS: Só pra ver se entendi, no seu batismo você está registrada com o sobrenome do ex-marido da sua mãe?

JM: Sim, que é meu pai oficialmente e eu nem conheci pessoalmente.

PAS: E é de Jesus?

JM: É, Palhano de Jesus é o sobrenome dele, e Silveira o da minha mãe. Depois de casar fiquei Joyce Silveira Moreno.

PAS: Você viraria Joyce de Jesus, possivelmente uma cantora de candomblé…

JM: Ou evangélica, quem sabe (risos).

PAS: nhamos a Clementina de Jesus.

JM: Podia ser uma das duas coisas.

Em "Encontro Marcado", de 1969, as asas da compositora começavam a ser cortadas: só quatro das 11 faixas tinham a assinatura de Joyce

Em “Encontro Marcado”, de 1969, as asas da compositora começavam a ser cortadas: só quatro das 11 faixas tinham a assinatura de Joyce

PAS: Joyce, você fez esse disco autoral de 1968, depois fez mais um e depois passou uma década até voltar a gravar canções suas. No meio tempo teve Passarinho Urbano (1976), que não era autoral.

JM: Esse é o disco do meu retorno mesmo como artista ao mundo da música, trabalhando com Vinicius de Moraes na Itália. Sergio Bardotti era o produtor que fazia os discos de Vinicius e Toquinho na Itália. Ele me conheceu, achou legal e propôs fazer. Gravamos, sei lá, em um dia ou dois, esse disco que é voz e violão.

Gravado na Itália, "Passarinho Urbano" (1976) reunia canções de autores (homens) sob a mira da censura ditatorial, como Aldir Blanc, Caetano Veloso, Carlos Lyra, Chico Buarque, Edu Lobo, João Bosco, Maurício Tapajós, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Ruy Guerra, Sidney Miller, Zé Keti...

Gravado na Itália, “Passarinho Urbano” (1976) reunia canções de autores (homens) sob a mira da censura ditatorial, como Aldir Blanc, Caetano Veloso, Carlos Lyra, Chico Buarque, Edu Lobo, João Bosco, Maurício Tapajós, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Ruy Guerra, Sidney Miller, Zé Keti…

PAS: Joyce intérprete.

JM: É, eu escolhi… Estava numa seca de composição no momento.

PAS: Estava numa seca? Não estava compondo?

JM: Sim, e optei por fazer as músicas dos colegas que estavam sendo censurados. Passarinho Urbano é um disco muito de compositores que estavam sendo censurados no Brasil naquele ano de 1975, que foi quando gravei o disco.

PAS: Eu queria entender como e por que a menina de 20 tem uma safra inicial de composições e depois some por dez anos. É como se a compositora ficasse recolhida?

JM: Não chega a dez anos, né? Foi uma fase. Tive as minhas filhas, fiquei um tempo afastada, foi um período meio de seca musical, nessa parte da composição. Mas sempre foi o que eu queria realmente fazer. Aí eu volto em 1975, 1976, começa de novo uma safra boa de composições, e algumas estão naquele disco que você gostou, Visions of Dawn, com Naná Vasconcelos e Mauricio Maestro. E daí não para mais. Daí pra frente vai, embala.

O disco autoral gravado em  1976 foi arquivado e só veio à tona em 2009, sob o nome "Visions of Dawn", por iniciativa do selo britânico FarOut

O disco autoral gravado em 1976 foi arquivado e só veio à tona em 2009, sob o nome “Visions of Dawn”, por iniciativa do selo britânico FarOut

PAS: Ou seja, houve um disco autoral em 1976 que não foi lançado.

JM: Que só foi lançado 30 anos depois. E depois tem Natureza, que não foi lançado nunca, que é o disco com Claus Ogerman, também autoral, feito em Nova York em 1977, com orquestra, com tudo.

PAS: Cadê?

JM: Ele liberou duas faixas pra compilações, e só tem isso. Eu tenho uma cópia muito ruim de uma fita cassete da época, imagina. Mas estão lá os arranjos de orquestra dele, tá tudo lá.

PAS: Na verdade não é que você não compôs durante dez anos, você só não foi lançada.

JM: É, fui relançada em 1980 com o Feminina. Tem muita gente que acha que Feminina é o meu primeiro disco. Mas teve todo esse pré-eu.

Já sob o sucesso de "Clareana" no festival global MPB 80, "Feminina" (1980) marcou a volta da compositora, com "Mistérios", "Feminina", "Essa Mulher",  "Da Cor Brasileira", "Revendo Amigos", "Banana", "Aldeia de Ogum"...

Já sob o sucesso de “Clareana” no festival global MPB 80, “Feminina” (1980) marcou a volta da compositora, com “Mistérios”, “Feminina”, “Essa Mulher”, “Da Cor Brasileira”, “Revendo Amigos”, “Banana”, “Aldeia de Ogum”…

PAS: Por que esses dois momentos ficaram perdidos?

JM: Não sei, por falta de oportunidade mesmo. No caso do Claus Ogerman, ele não quis. Muitas gravadoras de vários países tentaram comprar esse tape dele, inclusive porque tinha, além dos arranjos dele, orquestra, músicos importantíssimos, muitos já falecidos, como Michael Brecker, Naná Vasconcelos, Joe Farrell, um monte de músico bacana. Nunca foi lançado porque ele não quis. Agora ele também morreu, e a família dissepra última pessoa que tentou, de um selo da Inglaterra, que não sabe onde está esse tape.

PAS: Você também não sabe?

JM: Eu não sei. Eu é que não sei mesmo, não sei de nada. Se tem alguém que não saiba, sou eu.

PAS: Esse disco tinha músicas suas que provavelmente ficaram conhecidas depois?

JM: “Feminina”, “Mistérios” (que apareceria em 1978, em Clube da Esquina 2, na voz de Milton Nascimento)…

PAS: Nada menos que essas músicas…

JM: Algumas coisas assim.

PAS: Seria um lançamento internacional seu?

JM: A ideia era essa.

PAS: Que viria a acontecer décadas depois, espontaneamente.

JM: Pois é. Quer dizer, o que tem que acontecer acontece, né? Mas os caminhos é que ficam meio tortuosos às vezes.

PAS: Você escreve no encarte de 50 que um crítico da época disse que “Superego” era uma música tão boa que não parecia ter sido feita por uma mulher.

JM: É, e outro dia um pesquisador amigo encontrou esse texto, acho que no Diário de Notícias, um desses da época.

PAS: Não vamos dar nome ao boi?

JM: Eu não sei o nome do cara, mas sei que tá lá. Recebi esse recorte. Até com o nome do cara, mas eu esqueci. Dizia isso, “grande música, difícil de acreditar que tenha sido feita por mulher”.

PAS: O relançamento também reproduz o texto de Vinicius de Moraes escrito para o disco de 1968. Eu não entendo muito bem o sentido, mas ele diz que “ela facilmente poderia ser só uma cantora”.

JM: Ele achava isso. Ele já tinha percebido isso.

PAS: Ele estava criticando o fato de você também compor?

JM: Não, de jeito nenhum, acho que pelo contrário, ele está dizendo que eu não queria o caminho mais fácil. Que eu poderia ir bem como cantora, se eu quisesse ficar só nesse caminho. Mas ele sacou de cara que o caminho não era esse. Tanto que no final ele fala “Joyce, que vai dar o que falar”, não me lembro exatamente, “a que tem o sentido das palavras e conhece o mistério do seu casamento com as notas”, quer dizer, o ofício da composição, palavra e som.

PAS: E foi ele que te chamou de feminista na ocasião?

JM: Foi.

PAS: O que era ser feminista em 1968? Você se sentia?

JM: Eu não sabia nem o que era isso. Eu estava só escrevendo no feminino singular e achava que era muito natural. Mas, devido ao forrobodó todo que aconteceu, eu me dei conta de que não, de que não era ainda o momento disso. O momento chegou, mas naquela época realmente era uma coisa meio esquisita.

PAS: O forrobodó a que se refere é porque você falava “meu homem” (na letra de “Me Disseram”)?

JM: É, e de sempre falar na primeira pessoa do feminino. Isso não se usava. Ninguém fazia isso.

PAS: Estamos falando de machismo?

JM: Mas claro. Claro. Claro.

PAS: Hoje podemos decupar completamente o que significava tudo isso.

JM: Podemos e devemos (ri). Hoje é perfeitamente compreensível isso, a gente entende.

PAS: O machismo não teria adiado dez anos da sua história? Não foi isso que aconteceu?

JM: Acho que teria adiado dez anos ou mais. Tem hora que acho que ficar velha é uma coisa sensacional, porque começam as pessoas a valorizar um monte de coisa que você fez lá atrás e que ninguém dava a mínima. E as pessoas falam “Joyce é uma compositora do nível de um fulano de tal”, e aí falam dos grandes nomes da MPB. É engraçado isso, porque, né?, durante esses anos todos nem os meus colegas se davam conta disso. Porque eu não fazia concorrência com ninguém, porque eu era uma menina no mundo dos meninos, brincando no playground dos meninos.

PAS: Pra tentar não ser aquele cara de 1968 que disse que você quase parecia um homem, tenho que confessar que eu fazia parte disso. Eu não prestava atenção em você.

JM: Tá vendo?

PAS: E eu não sei se é porque você é mulher, eu acho que era. Tudo que tem acontecido leva a gente a entender essas coisas.

JM: Possivelmente (ri). Mas você não acha um espetáculo que isso está dando essa compreensão nova de todas essas coisas?

PAS: Importantíssimo.

JM: Eu acho um momento muito interessante, com todos os possíveis exageros que aconteçam e vão acontecer. É muito interessante que se dê atenção a esse negócio, “opa, peraí, mas então…”. Legal isso. Acho um momento muito emblemático.

PAS: No mesmo momento em que a moça que estava aí desde os 20 está se declarando “velha maluca”, é mais legal ainda.

JM: (Risos.) É uma outra próxima questão. O mundo vai ter que lidar com essa geração, do pessoal de 1968 por exemplo, os baby boomers, que mudaram também o conceito de velhice. O conceito de tempo também muda com a minha geração. É uma geração bem foda, viu?, que muda muita coisa.

PAS: A letra de “A Velha Maluca” é sensacional.

JM: Ah, que bom, que bom. Pois é, porque na verdade soy yo, né? Eu fiz pra mim mesma. Eu sou minha própria musa e tô totalmente no sujeito de mim mesma.

PAS: Olhando de fora e de longe, você não parece maluca…

JM: É uma nova maneira de encarar esse tempo extra de vida. Quando eu era menina, uma pessoa de 50 anos era pra mim uma pessoa decrépita. Hoje em dia 50 anos eu acho um jovem adulto. Porque a adolescência vai até os 35, mais ou menos, então os jovens adultos têm 50, 60, estão longe ainda de ser velhos. 70, agora, vamos lá, vamos começar um negócio aí e vamos ver como é que é.

PAS: Se for homem, às vezes fica moleque até morrer.

JM: Então, acho que tudo isso faz parte. Acho interessante. A gente tem que começar a lidar com essas coisas também.

PAS: Você vai fazer 70 ou já fez?

JM: Acabei de fazer, fiz em janeiro.

PAS: Esse seria um novo momento de feminismo, se afirmar como mulher de 70?

JM: Eu acho, sim.

PAS: Tetê Espíndola, que passou dos 60, já me falou isso.

JM: Acho que é uma próxima questão que vai ter que ser encarada, sim, totalmente. Tem um livro, as francesas verbalizam e contextualizam tudo, tem essa mulher que se chama Christiane Collange e tem um livro chamado A Segunda Vida das Mulheres, que é essa aí, a partir dessa idade. Ela fala 55 anos, eu não acho, acho que é mais à frente ainda um pouco. Mas de qualquer forma é uma vida nova, é todo um novo caminho, e é uma maneira bem diferente de lidar com isso.

PAS: Você fala disso em “A Velha Maluca”, de não ter mais compromisso em perecer bonita…

JM: A escravidão da beleza. Eu acho que a mulher sofre demais com isso.

PAS: Mais que o homem.

JM: Muito mais, mas muito mais. Infinitamente mais. Infinitesimíssimamente mais. Eu acho que é uma escravidão realmente que se vive. E é uma liberação quando você chuta o balde, quando diz “ok”.

PAS: Joyce, um dos momentos em que eu me dei conta dessa questão do machismo em relação às compositoras foi você justamente que provocou. Fui fazer uma reportagem sobre o clube da esquina e entrevistei um monte de gente, inclusive você. Algo que você falou, eu sei mais ou menos, mas não lembro perfeitamente, me despertou pro fato de que você era daquela turma, mas não aparecia. Por quê? Você disse: “O Milton Nascimento era a musa”.

JM: Eu falei pra você que Milton era a musa, e continuo achando isso (ri). É um grupo muito de meninos, rolava uma certa misoginia.

PAS: Era clube do Bolinha, como todos eram.

JM: Mas na verdade eu também não era desse grupo. Eu já te falei uma vez, eu sou a quinta coluna (ri). Eu sou de todos os grupos. Eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também (ri).

PAS: E você é Nara Leão, ela passava por todos os movimentos e não pertencia a nenhum.

JM: É, totalmente. Eu estava ali de espectadora. E enquanto isso, diferentemente do caso da Nara, que era uma intérprete de todos os movimentos, lindamente, embora todos esses movimentos me abraçassem muito – o samba, a segunda geração da bossa nova, os tropicalistas, os mineiros do clube da esquina…  – na verdade, na verdade, a minha música não é de grupo nenhum. Eu tenho meu nicho, que é um nicho muito só meu. É uma coisa minha, eu não tenho companheiros, nunca fiz parte de nenhum movimento, o movimento era eu sozinha ali com minha prancha surfando no meio dessa história toda.

PAS: Nisso você fica num lugar mais discreto, digamos, que não sei se é por vontade própria ou se é o machismo estrutural que coloca você nele e não te faz ser citada nem no meio dos bossa-novistas, nem do clube da esquina, e assim por diante.

JM: Eu acho que isso aí no futuro alguém vai descobrir. Por enquanto eu ainda não sei, eu sou uma criança, não entendo nada.

PAS: Esse é Erasmo Carlos (risos). No meio de tudo, bem cedo, Elis Regina percebeu você e te gravou (“Copacabana Velha de Guerra”, em 1970) e tentou, não sei de que maneira, furar essa barreira.

JM: Sim, ela gravou. Maria Bethânia, por exemplo, quando eu tinha 19 anos, ela já cantava minhas músicas, mas não chegou a gravar. A primeira que gravou foi Elis. Teve Marília Medalha que também me gravou, nessa mesma época (“Três Cavaleiros”, 1969).

PAS: É outra que também desapareceu do olho do furacão.

JM: Tem um começo ali de algumas pessoas já dando essa sacada, mas isso começa realmente a acontecer a partir de 1979. Aí, sim, vem uma enxurrada de gravações.

PAS: É a geração Malu Mulher, com um surto feminista, digamos.

JM: Isso. Aí vêm Elis, Bethânia, Quarteto em Cy, Milton, Nana Caymmi, Boca Livre, Joanna, um monte de gente começa a me gravar.

Editado de forma independente por um selo batizado Feminina, "Tardes Cariocas" (1983) chegou ao Japão e continha até então inédita "Nacional Kid", com Ney Matogrosso convidado a proferir os versos de zomba "mulher minha não mexe com essas coisa não/ tem que aprender a obedecer o seu patrão"

Editado de forma independente por um selo batizado Feminina, “Tardes Cariocas” (1984) chegou ao Japão e continha até então inédita “Nacional Kid”, com Ney Matogrosso convidado a proferir os versos de zomba “mulher minha não mexe com essas coisa não/ tem que aprender a obedecer o seu patrão”

PAS: E o Japão descobre você.

JM: O Japão em 1985 me descobre.

PAS: Teve que ser lá do outro lado do mundo?

JM: É, são coisas que acontecem, né? Agora essa história está mais bem contada. Eu reescrevi meu livro de 1996, a gente está pensando que vai sair mais ou menos em setembro. Vai ser reeditado, se chama Fotografei Você na Minha Rolleyflex, como o original, mas Remix. Estou fazendo o remix desses textos, com um livro-bônus que vem junto. Tem vários capítulos que não existiam, o livro praticamente dobrou de tamanho. E essa história de como o Japão me descobriu, o que aconteceu, por que eu fiquei escondida a partir de uma certa altura no início dos anos 1980, depois daquele sucesso todo. Tá tudo contadinho ali direitinho, a história agora está bem explicada.

PAS: Uma coisa que tem a ver com o momento do disco de 1968 é que, embora também não seja muito citada, você era da geração dos festivais da canção, era daquela turma em que está todo mundo.

JM: Sim.

PAS: Como foi participar dos festivais?

JM: Foi ótimo. Fiz amizades que duram até hoje. Acho que foi a melhor coisa. Profissionalmente me levou ao primeiro disco, que foi um fruto da participação em festival. E mais importante que isso, acho, são as amizades. Você vê os compositores, alguns estão até nas fotos do disco, estão todos produzindo, todos a mil, todo mundo com saúde forte, firme, fazendo música. Vários estão participando de 50, como Marcos Valle, Toninho Horta, Danilo Caymmi, Francis Hime, Roberto Menescal, que não é dessa época, mas é de antes até, me conhece de criança porque era amigo do meu irmão mais velho. São esses amigos que ficaram, Jards Macalé só não veio porque na ocasião estava doente, internado. Está todo mundo ótimo, inteirão.

PAS: Tutty Moreno entrou na história em que momento?

JM: Ele entra bem depois.

PAS: Ele não é o rapaz da primeira música?

JM: De jeito nenhum, nem sonhava em conhecer. Ele é o rapaz, por exemplo, de “Mistérios”. São músicas muito mais felizes. São outras situações. Conheci ele em 1977, em Nova York.

PAS: Bem depois então de ele ter tocado com os tropicalistas.

JM: Sim, ele já estava morando em Nova York quando eu cheguei lá. A gente se conheceu e em coisa de dez dias a gente já estava casado.

PAS: Podemos dizer que esse amor precipita seu reaparecimento com Feminina?

JM: De certa forma sim. Ele me ajuda a formatar o pensamento musical que eu tinha e que faltava exatamente essa completude rítmica que ele veio trazer pra mim. Ele contou, no programa que fizemos sobre Feminina com o Charles Gavin, que quando me viu tocar pela primeira vez bateu uma coisa e ele falou: “Opa, ali eu vou me dar bem, vou poder tocar como eu sempre quis tocar”, que é uma bateria livre. Isso é o lance do violão, a bateria se apaixonou pelo violão. O violão, por sua vez, estava esperando um baterista que tivesse essa coisa melódica e harmônica que ele tem tocando. Então deu muito, muito certo. Depois, o resto foi tudo consequência, mas acho que começa com a música mesmo. E a outra questão é a questão do homem que não tem medo de mulher. Isso é um negócio espetacular. Isso é um negócio que não tem preço, sabe? Porque no ambiente musical sempre, quando uma mulher aparece muito, às vezes fica difícil a relação entre casais em que os dois estão na mesma profissão.

PAS: Não aconteceu com vocês?

JM: Nunca aconteceu. Mas sabe o que é nunca, em momento algum, jamais? Todas as questões que possam ter havido eram pessoais, de homem e mulher, mas não de um artista, um músico para outro. Isso é espetacular, porque é o homem avant la lettre, sacando essas questões que as novas gerações de homens hoje estão descobrindo, e ele já sabia. Isso é um negócio que eu acho espetacular.

PAS: Podemos então inverter a máxima machista e dizer que atrás de toda grande mulher existe um grande homem?

JM: Atrás não tem, tem do lado.

PAS: Só pra inverter…

JM: Não, não, não, essa máxima não pode ser invertida nunca, nunca. Atrás não existe, existe do lado mesmo.

PAS: Antes de começarmos a entrevista aqui no palco, ele estava na bateria e eu ameacei falei que ele ia participar…

JM: Ele fugiu (ri)!

PAS: Fugiu.

JM: Ele saiu correndo.

PAS: Não sei se atrás, mas ele gosta de ficar no bastidor.

JM: Não, ele é um cara muito discreto. Mas é um músico que não preciso dizer quem é e todo mundo sabe a importância dele, e cada vez sabe mais. Está cheio de baterista fazendo tese de mestrado sobre ele aí. As pessoas sabem muito bem de quem se trata. E isso é muito legal, as pessoas se olharem como iguais e não ter essa questão em momento nenhum. Isso é uma joia, um negócio que não tem preço.

PAS: Mudando de instrumento, em 1968 ainda se chamava violão de pinho, como você diz na segunda música ()…

JM: Ah, o pinho… O pinho é a madeira de que se faz o violão, né?

PAS: Mas por que o nome pinho saiu de moda? É tão bonito.

JM: Hoje em dia as pessoas usam aquele fiber glass, né?, aquelas coisas todas. Mas o meu é de pinho. É de cedro, aliás. É cedro com cedro. Tem o pinho, o  jacarandá da Bahia, essas madeiras nobres todas são as melhores que fazem os violões. Tem o ébano ali no braço.

PAS: Você sempre foi do violão, e ele sempre foi seu?

JM: Sou completamente do violão, e ele sempre foi meu.

PAS: Por quê?

JM: Por que eu não sei… Comecei com ele aos 14 anos, ele era do meu irmão, não era meu. Meu irmão é que tocava, e eu comecei a ver meu irmão tocar com os amigos dele. Tínhamos 13 anos de diferença. Eu era filha temporã. Mas fiquei ali sacando aqueles garotos, Menescal, Eumir Deodato, aquela turma que chegava lá em casa e tocava com meu irmão. E quando ele saía eu pegava o instrumento dele e ficava ali tentando, e foi assim que aprendi, como autodidata.

PAS: Seu irmão não foi pra música?

JM: Não, ele poderia ter ido, porque era muito bom. Mas ele queria casar, queria ter uma vida toda regrada, certinha, então se formou em direito, foi trabalhar no Banco do Brasil, fez carreira no banco. É uma outra vida. Está com 83 anos, e tudo certo. A vida dele virou o que ele queria.

PAS: Você tinha referências femininas pra se inspirar?

JM: Talvez a minha mãe. Minha mãe não sabia que era feminista, mas era, embora ela tivesse uma série de questões comigo. Por ser de uma geração mais antiga – ela era de 1912 -, tinha uma série de coisas que para ela eram muito difíceis. Ela fazia na prática, mas não queria aquilo pra mim. Mas ela criou os três filhos sozinha, sempre trabalhou, sempre foi arrimo de família. E ela tinha uma questão, que hoje em dia olhando pra trás eu acho muito legal: ela queria muito ter estudado. Foi tirada da escola com 14 anos porque ficou noiva, do melhor partido de Niterói.

PAS: Não do seu pai?

JM: Não, daquele primeiro marido dela. Então ela ficou noiva com 14 anos, casou com 19, e a família tirou ela do colégio. E ela sempre teve muita sede de cultura, sempre gostou de ler, de música. Era interessada em todas essas coisas. E aí o que aconteceu foi que fez os filhos estudarem, sempre me ofereceu muita cultura, toda vez que sabia que tinha um concerto, uma peça de teatro, um balé. Me encheu de livros, todas as oportunidades que teve ela me encheu de cultura, e eu correspondi. Eu era a melhor aluna do meu colégio, da minha turma.

PAS: A letra de “Não Muda Não” dialoga com ela então?

JM: Eu acho que quem dialoga explicitamente com ela é “Feminina”, porque tinha essa outra questão, de dizer “minha filha, você não é feminina”. Passei minha adolescência inteira ouvindo isso, porque eu era meio tomboy, não gostava daquela coisa do vestido de organdi, da maquiagem, não gosto até hoje. Outro dia eu estava no show de aniversário da Wanda Sá, minha amiga há 50 anos, fui cantar com ela, e ela: “Nossa, te conheço há 50 anos e nunca vi você de salto alto, que absurdo”. Mas é verdade. Eu nunca gostei dessas coisas. Não era a minha onda.

PAS: Você sobe no palco sem maquiagem?

JM: Não, aquela maquiagem de serviço a gente põe (risos), mas não é o que eu gosto realmente de fazer. Eu sempre tive um gosto meio diferente em relação às meninas da minha idade. E a minha mãe adorava maquiagem, até 90 anos, que foi a idade com que ela morreu, se maquiava inteirinha pra ir ali na esquina comprar jornal. Ela tinha esse outro lado, e dizia: “Você está horrível, você não é feminina”. Então tive que fazer aquela música pra ver se ela entendia que “não é no cabelo ou no dengo ou no olhar”, é uma outra história. É muito freudiana essa música.

PAS: Mas estou achando que “Não Muda Não” também.

JM: Não, mas “Não Muda Não” é mais pros rapazes saberem que a disposição era outra, que eu realmente não era desse time das meninas que iam ficar noivas logo. Dispensei muitos pedidos de casamento, muitos pretendentes. Nunca pensei nisso. Claro que em algum momento você escorrega e casa cedo demais, que foi o que aconteceu, e aí tive duas filhas, fiquei um tempo parada, não foi legal pra mim.

PAS: É um pouco a história de todas as mulheres, ou a maioria.

JM: É, uma primeira experiência de casamento que não foi feliz, pra mim pelo menos. Mas a vida é isso mesmo, é tentativa e erro. A gente vai tropeçando, mas vai. Um dia acerta.

PAS: Tem um compacto seu de 1971 em que você canta “Nada Será Como Antes”. Foi antes de Milton gravar?

JM: Isso. Foi.

PAS: Você foi a primeira a gravar aquela música?

JM: Fui, no tempo em que a rede social se fazia pessoalmente, né?

PAS: Como foi essa história?

JM: Eu tinha ouvido a música, ele vivia almoçando lá em casa, mostrou a música, eu gostei e gravei. Ele adorou a gravação.

PAS: Sua versão ficou meio desconhecida…

JM: Ficou, mas você sabe que eu acho muito bom ser meio desconhecida até certo ponto, pra entrar no mundo mesmo com o pé direito, com a carreira com o pé direito? Eu sempre digo que não fiz carreira, eu faço música. A partir de Feminina sou eu de verdade, estou ali no controle, fazendo as minhas coisas, com a minha cabeça, com as minhas ideias, o meu violão, a minha voz, as minhas letras, quase todas, ou com parceiros, mas na maior parte minhas, meu pensamento musical. Tudo acontece na hora certa.

PAS: Como as gravadoras, que hoje nem existem mais, te viam?

JM: Rebelde.” Eu fiquei na geladeira durante alguns anos. Por muitos anos fui banida, literalmente um boicote.

PAS: Isso é antes ou depois de “Clareana”?

JM: Depois. Foi com aquele sucesso todo. Eu tive uma questão jurídica com a EMI-Odeon, que usou indevidamente um playback meu no disco de uma outra cantora. Só que era eu tocando, eu fazendo vocal de apoio, eu no arranjo, minhas filhas dando a risadinha no final de “Clareana”. Aí eu pedi, e falei com advogado, e foi tirada a música. Quer dizer, não tinha por que fazer outro disco, porque a vendagem da moça não justificava.

PAS: Não daríamos o nome aos bois, também?

JM: Não (a cantora era Sonia Mello, o LP era Grandes Mulheres Grandes Sucessos, de 1980, e o produtor, Miguel Plopschi). Eles tiveram que tirar o disco de circulação. E aí o produtor ficou muito aborrecido com essa história.

PAS: Quer dizer, ele roubou uma coisa sua e depois ficou bravo?

JM: É, e muitos anos depois eu fiquei sabendo exatamente o que aconteceu. Houve uma reunião de alto nível, em nível de presidentes de gravadoras, “ninguém mais contrata, pra servir de exemplo, pra não abrir precedente”.

PAS: Você tinha que aguentar calada?

JM: A ideia era justamente acabar com a carreira daquela pessoa que está se rebelando contra, né? Só que aí eu fiz um disco independente que foi parar no Japão. Aí, pronto, a minha vida mudou. Agradeço a todos eles, porque foi muito bom por esse lado.

PAS: Aí vem talvez o DNA dinamarquês?

JM: Será? Não sei.

PAS: Porque você fez um desvio dos caras que queriam te boicotar.

JM: Aí eu sou o quê? Viking (gargalha)? Tá bom.

PAS: Bruxa… Velha maluca… Na verdade é trágico, porque talvez você tenha conseguido fazer uma volta que a maioria não consegue.

JM: Pois é, graças a Deus consegui, sim, a volta está dada.

PAS: Porque gente com talento não falta.

JM: Não falta mesmo, no Brasil opa, agora então.

PAS: Mulheres, estamos falando, neste caso.

JM: Mulheres, gente em geral.  É muita gente. Eu vou te dar um exemplo de um cara que era supertalentoso, não é uma mulher, é um homem, mas passou por uma situação de ter toda a obra censurada, o Sirlan, lá em Minas. É um compositor talentosíssimo, e acho que se retirou completamente, porque o mercado às vezes tinha essa coisa tão agressiva, que as pessoas se retiravam mesmo, ficavam horrorizadas com aquilo.

PAS: Quando perguntei de referências femininas você falou da sua mãe, mas eu estava pensando em mulheres que tocassem violão, que compusessem, se você tinha isso pra se mirar.

JM: Ah, não, isso eu não tinha, ninguém.

PAS: Você teve que inventar? Tinha ali uma Maysa, uma Dolores Duran.

JM: É, tinha a Rosinha de Valença como instrumentista, mas era instrumentista, somente focada no instrumento. Referência assim não tinha nenhuma, não.

PAS: Inventou sozinha então?

JM: É, né?, é assim que é.

PAS: Nesse momento da volta pelo Japão, você vira uma artista superprodutiva, em termos de disco mesmo. Você faz muito disco, todo ano tem novidade sua.

JM: Faço até demais.

PAS: Nunca.

JM: Mas é que eu gosto de fazer disco, gosto de estar sempre inventando uma coisa, todo ano uma coisa diferente. Acho muito legal, e tenho milhões de projetos que não vou conseguir dar conta de realizar, porque quando eu conseguir realizar algum deles, o próximo, já vai ter algum outro que vou estar a fim de fazer, e por aí vai. Tem muitos projetos possíveis pela frente, mas muitos mesmo.

PAS: Pode contar alguma coisa?

JM: Tem vários. Por exemplo, minha parceria com Zé Renato. A gente tem uma parceria que já dá pra gravar um disco inteiro e ainda vai sobrar, um disco só autoral nosso. Isso já é um projeto, uma possibilidade. Aí tenho um monte de música inédita pra fazer um próximo disco autoral a qualquer momento, brevemente. Tenho um projeto com parcerias com pessoas em outros idiomas. Tenho uma parceria americana com letras em inglês. Tenho letra em italiano feita pelo Sergio Bardotti, que ele me deu e só fui musicar agora. Tem parceria minha comigo mesma em francês, meio francês, meio português. Tenho música com Paulo César Pinheiro que tem uma versão em espanhol. Tem todas essas possibilidades, de mil coisas. Tem colaborações com outros músicos, que eu adoro fazer, de vez em quando eu junto com alguém, tipo fiz com Kenny Werner, um superpianista americano, fizemos um disco lindo só de canções bonitas. De vez em quando tem essas coisas, quando você está circulando no mundo uma coisa interessante é isso, você conhece um monte de gente e vai trocando, e vai fazendo.

PAS: Apesar de todas as mudanças, continua sendo um clube do Bolinha todo esse mundo da música?

JM: Não, tem mulheres bacanas também pra trabalhar. Agora, então, tem uma safra de instrumentistas muito legais. Muitas, muitas. São todas umas meninas jovens, de 30 anos, legais. Tem Joana Queiroz, Antonia Adnet, uma arranjadora chamada Gaia Wilmer, que é um espetáculo. Tem um monte de mulher bacana fazendo música, está cheio.

PAS: Tem Clara e Ana (as filhas se tornaram as cantoras Clara Moreno Ana Martins).

JM: Tem Clara e Ana, que são cantoras, que optaram por ser cantoras. Estou falando das instrumentistas, que é um caminho mais difícil, mais complicado ainda.

PAS: Tem algumas artistas já fazendo shows com 100% de mulheres, todas as instrumentistas.

JM: É, isso eu não acho legal. Eu jamais faria um trabalho só com mulher tocando, se essas mulheres não estiverem na mesma vibe musical que eu. Aí é uma outra questão. Em muitos momentos, por exemplo, quando fiz trabalhos educativos que fiz pra MultiRio, de música brasileira, pra botar nas escolas, eu sempre tinha um segundo violonista trabalhando comigo, uma pessoa dividindo os programas comigo. Teve série que foi com Antonia Adnet, superlegal. Teve série que foi com Alfredo del-Penho, igualmente superlegal. Tem um disco meu chamado Astronauta, que gravei em Nova York, com pianistas americanos, metade com Mulgrew Miller, homem, metade com Renee Rosnes, mulher, igualmente legal. Vai pra o que a música pede. Não penso no gênero da pessoa.

Em 1998, Joyce gravou "Astronauta - Canções de Elis" em homenagem ao repertório da cantora gaúcha que foi uma das primeiras a gravá-la

Em 1998, Joyce gravou “Astronauta – Canções de Elis” em homenagem ao repertório da cantora gaúcha que foi uma das primeiras a gravá-la

PAS: É que hoje em dia isso está muito em voga.

JM: Está muito em voga. Pra quem quiser trabalhar assim, OK. Nesse meu disco, por exemplo, tem a Joana Queiroz de clarone logo na primeira faixa, “Não Muda Não”. Mas é uma coisa que a música estava pedindo o som daquela pessoa, então vamos lá.

PAS: Você já fez discos pro Tom Jobim, pro Vinicius de Moraes, e teve um pra Elis Regina, de uma mulher para outra…

JM: Fiz um pro Dorival Caymmi também, que não saiu ainda aqui no Brasil. Tá vendo?, tem muitas possibilidades, e eu quero todas.

"Fiz uma Viagem - Songs of Dorival Caymmi", 2017

“Fiz uma Viagem – Songs of Dorival Caymmi”, 2017

PAS: Quando você fez pra Elis era uma mulher, mas cantando músicas de homens…

JM: Repertório da Elis.

PAS: Ela não teve também tantas mulheres pra ser a intérprete delas.

JM: São escolhas, né? É uma maneira, minha leitura da Elis foi ali.

PAS: E era assim, ainda é um pouco. Entendo que a questão de gênero fique meio chata se a gente fica insistindo nela, mas…

JM: É, eu quero a música.

PAS: Mas encontrar você, que é uma pessoa que falou sobre isso e sabia disso, embora não tenha feito essa bandeira… Tinha a ver com seu gênero, quando os caras da gravadora queriam boicotar, não tinha?

JM: Acho que sim. Acho que sim.

PAS: É legal revisar isso, porque a gente descobre coisas que não sabia sobre nós mesmos.

JM: Mas não cabe a mim também muito. Cabe a mim apenas relatar, e aí as conclusões as pessoas vão tirando. É mais isso.

PAS: Muitos compositores pegam implicância dessa ou daquela música que escreveram quando eram jovens, e não querem mais voltar a elas. Pra você pegar seu primeiro disco e regravar inteiro, é porque não tem isso?

JM: Não, não tem mesmo. Eu acho, claro, que obviamente houve uma evolução na questão da composição. Mas o ponto é que aquelas composições já tinham um negócio legal. E feitas hoje, com as ferramentas que eu tenho hoje, que eu não tinha naquela época, dá mais um sabor pro negócio, fica mais legal ainda.

 

 

 

Manoel Poladian, o avô do showbiz

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Manoel Poladian e o Andre Rieu de Papelão, sua mina de ouro, atrás dele: faro inato para os bons negócios - Foto: Jotabê Medeiros
Manoel Poladian e o Andre Rieu de Papelão, sua mina de ouro, atrás dele: faro inato para os bons negócios – Foto: Jotabê Medeiros

Desde 1958, o empresário criou festivais e promoveu shows com Vinicius de Moraes, Elis Regina e Wilson Pickett, descobriu Jorge Ben, ignorou Chico Buarque, foi abandonado por Daniela Mercury e esteve por trás de mais de 200 apresentações de Ray Conniff. E ele está longe de parar, conta Jotabê Medeiros

Em seu escritório na região da Avenida Berrini, em São Paulo, há em todas as janelas um pires com um punhado de sal grosso e cabeças de alho. Filho de um fotógrafo e uma dona de casa armênios que imigraram para o Brasil em meio à Segunda Guerra, o empresário Manoel Poladian não crê em bruxas, mas prudentemente as teme. Aos 72 anos, ele é um controverso pioneiro do showbiz nacional. Há quem o tenha como um padrinho, outros como um capo.

Poladian foi o empresário que inaugurou recordes de público no Brasil no início dos anos 1970, época em que realizou o musical “Uma Noite em Buenos Aires”, com Astor Piazzola, Mariano Mores, Jorge Sobral e os maiores nomes do tango. Foram 1,5 milhões de ingressos vendidos e 175 shows no Anhembi, em São Paulo.

Mas Poladian já era um veterano, àquela altura. Em 1958, com apenas 16 anos, conseguira emancipação da família e ganhava a vida como comediante na televisão em programas como “Grandes Atrações Pirani Philco”, na TV Tupi. Tinha uma trupe de piadistas batizada como Os Boçais. Achava-se engraçado e independente. Mas o pai deu-lhe uma surra de chinelo bumerangue, conta, para que largasse o vício artístico. “Nesse meio, ou você é puta ou é viado”, ralhava o velho Manuk.

Em 1961, já com 19 anos, para fugir ao confronto, ele realizara parcialmente o desejo do pai: entrara em Direito no Mackenzie. “Era o auge da bossa nova. Vinicius tinha dito que São Paulo era o túmulo do samba, e aquilo me deu uma ideia. Resolvi fazer um festival universitário”. Criou o Festival da Balança, cujo elenco, já na primeira edição no Teatro Mackenzie, era invejável: o próprio Vinicius, Baden Powell, Silvinha Teles, Luiz Bonfá, Tamba Trio, Dick Farney, Lúcio Alves. Três mil pessoas encheram um espaço onde só cabiam 1,5 mil. Havia gente pendurada na sacada, nos corredores, em pé.

O Festival da Balança e suas edições subseqüentes eram beneficentes e foram o embrião dos festivais de arena que vieram depois. O refrigerante Crush! bancava os cartazes, que ele colava pela cidade. “Esses caras acham que inventaram o marketing, mas quem inventou fui eu”. Com espírito de comerciante, Poladian virou celebridade na universidade. Seu amigo Taiguara compôs o jingle da candidatura dele ao centro acadêmico.

Ele então encorajou-se a fazer novas edições, mas em 1962 e 1963, havia um problema: com que elenco? “Foi um ano péssimo, porque a bossa nova estava estourando no exterior, tinha os famosos shows no Carnegie Hall e estava todo mundo viajando”, lembra. Silvinha Teles o salvou. “Tem um cara lá no Beco das Garrafas que é um assombro”, lhe disse. Foram atrás do sujeito: Jorge Ben. Foi assim que Jorge Benjor acabou fazendo seu primeiro show em São Paulo. “Tive que alugar um smoking pra ele lá na Rua Pamplona, porque não tinha nem terno”, conta Poladian.

Hebe Camargo foi a apresentadora daquele Festival da Balança. Tinha tanta gente querendo se apresentar que Poladian teve que dizer não para alguns postulantes. Dois deles: Lennie Dale e um jovem Chico Buarque de Hollanda. “Não deixei. Chico ficou na porta, não o deixei cantar porque já estava com quatro horas de show. Também, nem sabia quem era, sabia apenas que vinha da USP”, lembra o veterano.

Dali em diante, Poladian desenvolveu um know-how em promoção e realização de shows que o projetaria nesses 54 anos de carreira. Em 1965, fez um grande festival no Clube Pinheiros, com 8 mil espectadores, com Elis, Nara Leão, Jô Soares, Edu Lobo, Baden Powell, Vinicius. Sua fama provocou disputa. “Um dia, vieram me dizer que havia três baianos na porta do meu escritório. Mandei entrar. Eram Caetano, Gil e Bethânia”, conta. Passou a empresariá-los durante toda a década de 1970, realizava cerca de 80 a 100 shows por ano. “Apresentei Flora a Gil. Ela vendia ingressos para mim”, lembra.

Em 1972, foi contratado pela TV Globo e realizou shows de Mungo Jerry, Wilson Pickett, Demis Roussos, Santabarbara. Sua carreira internacionalizou-se. Em 1975, virou empresário do maestro Ray Conniff, que não fazia shows com outro empresário. Realizou mais de 200 shows de Conniff, em 15 temporadas. Fez shows de James Taylor no Parque Antarctica. Colocou 189 mil pessoas no Maracanã para ver Sting (a capacidade era de 100 mil). Hoje, é o empresário de outro fenômeno de público, Andre Rieu (35 shows lotados no Anhembi, com 8 mil pessoas em cada espetáculo).

A solidificação da indústria musical no país ampliou sua influência. Ficou 18 anos com Ney Matogrosso, capitaneou o sucesso do RPM (182 shows em 7 meses no ano de 1985, com 3 milhões de espectadores). Tem poucas mágoas no ramo. Daniela Mercury, que rompeu contrato com ele dois anos antes do final, é uma delas. “Nunca fale de um artista para outro, porque eles têm uma vaidade incrível”, afirma. Outra de suas boutades: “Os caras grandes reconhecem, os pequenos não”, diz. “Sempre paguei na segunda-feira. Nunca atrasei um dia, razão pela qual nunca me processaram”.

É possível dizer que Poladian nivelou o chão de terra batida no qual os empresários atuais colocaram asfalto. Ele continua em plena atividade, embora tenha delegado a dois de seus três filhos as funções de gestão dos negócios. Um dos dois netos, Gabriel, de 11 anos, ensaia seus primeiros passos no métier empresariando um clown.

Manoel Poladian segue o conselho do seu amigo, o chansonnier franco-armênio Charles Aznavour, 92 anos, que também empresaria (virá de novo no ano que vem): “Parar é a antecâmara da morte”, cita, adiantando que já pensa em escrever sua autobiografia. Vai ser um salseiro, porque Poladian não é um homem de meias palavras. “Aos 72 anos, posso falar o que quiser sem medo das conseqüências”, diz ele.

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

25 horas e ½ de Virada

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Um evento realizado em 28 ruas abertas, 8 bibliotecas municipais, 9 centros culturais, 7 teatros municipais, 11 casas de cultura, 16 Viradinhas voltadas para o público infantil, 10 CEUs (Centros Educacionais Unificados) e 5 palcos montados nos bairros das zonas sul, leste e norte. A Virada Cultural impacta pela variedade de atrações. É preciso ser mais de um para aproveitar ao máximo o que ela tem de bom. Foi o que FAROFAFÁ fez. Três repórteres realizaram uma cobertura ampla, geral e exaustiva, do começo da festa até o último acorde ecoando pela metrópole. O relato a seguir é um retrato da diversidade cultural em tempo de tensão e instabilidade política.

18h29 Julio Prestes

Nesse instante, o sul-matogrossense Ney Matogrosso já trocou três vezes de roupa. Ele subiu ao palco pontualmente às 18 horas, cantando “Rua da Passagem”, do pernambucano Lenine. Veste uma espécie de burca cintilante, peruca de carnaval ou chapéu de guerreiro medieval, ao gosto do(a) leitor(a). Não lhe faltam apetrechos no pescoço, nos braços e nas pernas. No show, dança, rebola, salta e hipnotiza. É Ney sendo Ney.

Ney Matogrosso

No espaço reservado às autoridades, a convidados e à imprensa, o prefeito Fernando Haddad e a primeira-dama Ana Estela Haddad prestigiam a abertura da Virada Cultural de 2016. Há três cadeirantes, muitos jornalistas e fotógrafos, jovens com pulseira rosa ou crachá. O público espremido vê tudo mais de longe. E é de lá que cartazes de “Temer Jamais” e coros de “Fora Temer” são avistados e ouvidos. Ney ignora essas manifestações.

No palco Júlio Prestes, tradicionalmente visto como o principal da Virada, Caroline Martins e Jefferson Matos interpretam na linguagem de sinais as canções. São um show à parte, porque dançam, fazem caretas e sorriem conforme a música. Onze atrações contarão com a tradução simultânea. Ex-secretário municipal de Cultura que se afastou para se recandidatar nas próximas eleições, o vereador Nabil Bonduki está ali, mas com a cabeça voltada para a política. A esta altura, ninguém sabe se a maratona cultural será tranquila. Haverá manifestações? “Que seja uma Virada da alegria, da cultura e de reflexão sobre o futuro do país, futuro que está comprometido pela interrupção de um mandato eleito democrativamente pelo povo”, afirma.

19h22 Rio Branco
Especializado em carnavalizar canções de Caetano Veloso, o bloco paulistano Tarado ni Você arrasta um pequeno cortejo pelo asfalto da avenida Rio Branco, em torno dos versos otimistas de “Os Mais Doces Bárbaros” (1976): “Com amor no coração/ preparamos a invasão/ cheios de felicidade entramos na cidade amada/ (…) alto astral, altas transas, lindas canções/ afoxés, astronaves, aves, cordões/ avançando através dos grossos portões/ nossos planos são muito bons”.

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O figurino dos foliões é ornamentado com galhos de árvores, que por vezes se misturam a folhas de papel com inscrições de “fora Temer” e “Temer jamais”, populares durante toda a Virada. A festa parece meio fora de lugar, ou, melhor dizendo, fora de hora. O carnaval não contagia, e o bloco querido da cidade desfila sem grandes transes catárticos, por entre versos que hoje soam melancólicos: “com a espada de Ogum/ e a bênção de Olorum/ como um raio de Iansã/ rasgamos a manhã vermelha/ tudo ainda é tal e qual/ e no entanto nada é igual/ nós cantamos de verdade/ e é sempre outra cidade velha”.

19h37 República

Os jovens Alberto Moraes e Dener Luiz Oliveira Santos, ambos de 20 anos, depois de atravessarem 15 estações de metrô, vindos de Itaquera, na zona leste, veem um público razoável e pouca concorrência ao redor na praça da República. Decidem montar seu negócio aqui mesmo, ao lado do público que assiste um tanto quanto barulhento à dupla de jazzistas formada pela norte-americana Dianne Reeves e o carioca Romero Lubambo. O mesmo show ocorreu quatro dias antes na casa de espetáculos Bourbon Street, em Moema, na zona sul paulistana. Só que lá o ingresso custava a partir de R$ 150. Na praça é de graça, como em todas as atrações da Virada Cultural.

Moraes e Santos não se importam com as pessoas conversando. Quanto mais alegres estiverem, maiores as chances de comprarem bebidas. A dupla da zona leste trouxe a mercadoria até o centro na esperança de ganhar cerca de R$ 150 por isopor vendido. A garrafa de vinho e de catuaba, dois hits de edições passadas do evento, custa R$ 10. Cervejas, R$ 10 e R$ 5 reais, e o minirrefrigerante, R$ 2. “Paramos primeiro no Anhangabaú, mas lá estava vazio”, afirma Moraes.

19h40 Arouche

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A caminhada de drag queens pelo largo do Arouche parece aquela cena em slow motion do filme As Panteras. Alice Nation, Dakota Monteiro, Pyetra, Slováquia, Gina Yamamoto: elas não estão ali a passeio. Penélope Nova é anunciada como “bicha que nasceu mulher por acidente”. Ela compõe o júri com a travesti Luiza Marilac e a drag Fátima Fastfood. Penélope tira de letra as roubadas que lhe impõem. “Se fosse rola, vocês não empurrariam para mim!”. Gina Yamamoto agita os braços freneticamente, como Elis-cóptero cantando “Sá Marina”. Pyetra brigou com a mãe, está com a maquiagem borrada de chorar. Mas ela termina vencendo o concurso de drags e levando um cheque de R$ 1 mil para casa.

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O clima é de pecados da carne. Na Churrascaria Prazeres do Sul, atrás do palco das drags, justamente no momento de maior ferveção, três freirinhas tomam três garrafas de 600 ml de cerveja Original e comem picanha. Dia de folga no retiro certamente não é dia para um colchão duro ordinário e tubaína caramelizada.

20h15 Av São João

Espécie de Esperanza Spalding da santeria, a cantora cubana Yusa encara a avenida reservada às mulheres cantoras com dois baixos elétricos e muita presença de espírito. “Esta avenida tem história”, diz. Ela tocou baixo no show de Lenine InCité, em Paris, a convite do pernambucano. Mas Yusa tem público rarefeito neste início de noite – seu coté de trova cubana com Jaco Pastorius concorre com todos os pesos pesados da praça Júlio Prestes, do Teatro Municipal e da praça da República. Não há quase nenhuma testemunha para seu conceito orgulhoso, black music afrocubana. A música é áspera, difícil para plateias heterogêneas, mas os malucos da hora não querem saber, é como se estivessem ouvindo Flea, dos Red Hot Chili Peppers. São poucos, mas dançam como uma tribo inteira de Sioux.

20h16 Av Rio Branco

No território dos roqueiros, não faltam jaquetas de couro, camisetas pretas ou brancas e jeans surrados. O analista de telecomunicações Ricardo Alexandre, de 40 anos, fez questão de mostrar a estampa das costas de sua jaqueta: Motoclube Trem das Onze, do Jaçanã. Para garantir um lugar na fila do gargarejo, ele chegou às 17 horas. Está impaciente: “É, até quando esperar para ver a banda da minha adolescência?”. O show começa com 16 minutos de atraso, mas Alexandre tem de aguardar outros 52 minutos até que a Plebe Rude toque a clássica canção “Até Quando Esperar” (1985). Neste ano, a banda de Brasília, que completa 35 anos, sobe ao palco com Clemente, da banda punk paulistana Inocentes, nas vozes e guitarra, Phillipe Seabra, também vozes e guiterra, André X no baixo e Marcelo Capucci na bateria. Surgida numa época em que a polícia batia em estudantes e a censura ainda perseguia os músicos, a Plebe Rude evita falar diretamente sobre a política. Estamos em 2016.

21h04 Júlio Prestes
“Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer”, declama a maranhense Alcione durante breve discurso, após abrir a apresentação no palco principal da Virada com sua versão em vozeirão para o clássico de Nelson Cavaquinho “Juízo Final” (1973). Enquanto ela discursa, o “fora Temer” se alastra pela plateia sem que a sambista pronuncie o nome do presidente interino, menos ainda o de Dilma Rousseff. Embora dilmista notória, Alcione se limita a criticar a extinção (já revogada) do Ministério da Cultura (MinC) e a ausência de mulheres e negros na equipe de primeiro escalão do governo provisório, que a artista parece já dar como definitivo. Sem contar com a amplificação do microfone de Alcione, o vendedor de cerveja também se manifesta.

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21h30 Boulevard São João

Enquanto a próxima atração não chega, no bulevar da avenida São João, a poucos metros da famosa esquina com a Ipiranga, o mágico Volckane entretém o público. Realiza aqueles truques de cartas, barbantes, elásticos e bolinhas que todos conhecem e todos se deixam iludir. Metade dos 50 anos de Robson Palazini, como está no RG de Volckane, foi dedicado ao ofício da mágica. Está feliz por circular entre a multidão. Seu desafio é levar a banqueta de madeira e a maleta até uma roda de pessoas e, em questão de segundos, atrair a atenção até mesmo dos mais incrédulos. Ele foi um dos 20 mágicos contratados para a Virada e receberá R$ 3 mil – quase três vezes mais do que faria numa festa infantil – para realizar performances durante duas horas. “Esse tipo de arte close-up, de proximidade, é muito desafiador. O público é muito diferente, mas também está sendo bastante receptivo.”

22h05 Av São João

No palco 100% devotado às mulheres da avenida São João, a funkeira carioca Valesca Popozuda faz a declaração de princípios sobre a quem pertence a programação gratuita e popular do evento: “Virada Cultural, baile de favela!”. O “jamais Temer” (ou “jamais temer”?) se projeta no paredão de um edifício e ecoa modestamente entre a plateia ultralotada, mas mais preocupada em dançar e se divertir que em protestar.

22h05 Boulevard São João
A performance de dança do grupo carioca #Passinho contagia a todos, exceto o cachorro Negrão, que late com insistência para oito integrantes. Alguns estão descalços e outros sem camiseta. Como se estivessem em suas próprias comunidades. MC Leone, uma espécie de mestre de cerimônias, tenta descontrair: “Temos até um convidado. Isso é fome de dançar”. Os donos do animal tentam repreendê-lo. Ele recua, para logo voltar à ação. Ao se aproximar da plateia, um dos dançarinos é atacado por Negrão. É mordido na perna, sem gravidade. Ele se aquieta. Mas, de repente, volta a morder de novo, agora na bermuda do mesmo dançarino. Alguém da produção tenta “comprar” um animal com um sanduíche. Os donos de Negrão desistem de assistir ao show e vão embora. A batalha do passinho, de um dançarino contra outro, pode recomeçar, sem mordidas.

 

22h15 MBoi Mirim

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“Falador passa mal, rapaz!” Max B.O. domina a plateia com seu grupo Partido B.O. e usando o bordão antigo dos Originais do Samba, mas está estourando o tempo – por conta de problemas técnicos, o show da banda pernambucana Nação Zumbi já vai atrasar uma hora. E os roadies estão no meio da rua com o equipamento, nem passaram o som ainda e já estão preocupados. “Aqui só pode tocar até as 23 hora”, murmura o barbudinho que cuida das guitarras. Numa confluência de ruas do M’Boi Mirim, na periferia sul de São Paulo, o palco descentralizado está cercado por uma barraca de yakissoba, uma mesa de quentão e uma notável guarnição policial – talvez o mais policiado palco das periferias.

22h28 barão de itapetininga

Há um ringue, e não um octógono de UFC, o esporte-pancadaria que virou moda no mundo todo, onde acontece hoje um tipo diferente de batalha. Duplas de atores comediantes improvisam no “Quintal’s Fun Championship”, diante de uma plateia que decide, na hora, qual delas deve prosseguir na disputa. Os temas são anunciados na hora pelo apresentador. Duas atrizes fantasiadas de paquitas são desafiadas a interpretar os papéis de patroa e empregada. O árbitro interrompe de tempos em tempos a “luta” e pede que elas revelem aquilo que não se diz, mas no fundo se pensa. É um besteirol, e é claro que a luta de classes acaba em sexo, com a empregada fazendo o papel de quem transa com o marido de quem lhe paga o salário. A plateia se diverte.

Batalha de improvisão
23h Ramos de Azevedo

A mineira Wanderléa inicia a apresentação que retoma o disco Feito Gente (1975), o primeiro de seus 16 álbuns que foi gravado ao vivo. É a segunda vez que uma das primeiras estrelas do rock brasileiro toca no Theatro Municipal – há dois anos, executou a íntegra do disco Maravilhosa (1972). Está elegante, e sua voz permanece tão precisa quanto há 40 anos. Fica à vontade com a plateia, que devolve com gritos de “divina”, “musa”, “maravilhosa” e “casa comigo”. Mas o disco marcou uma fase depressiva da carreira da artista, e o ar intimista marca a apresentação. Em “Segredo”, de Luiz Melodia, ela se entrega e se joga no chão, após os versos “eu tenho um recado/ um ódio interno marcado/ guardado/ fincado, pregado, lacrado”. Todos aplaudem de pé.

0h15 Dom Jose Gaspar
O meio quarteirão entre as ruas Barão de Itapetininga e 24 de Maio está lotado de jovens que dançam, conversam, bebem e fumam. Poderia ser um palco da Virada, mas é mesmo a discotecagem do DJ Junior Black. Ele se espreme na já apertada entrada de um cubículo que é o Rei dos Doces, ponto comercial de Wagner dos Santos, de 40 anos. Há cinco anos, em todas as sextas-feiras das 19 às 23 horas, uma multidão é atraída para esse calçadão no centro para curtir R&B, rap, swag e black music. “Este é o meu público, não é o da Virada”, orgulha-se Santos. Começa a tocar “Rap É Compromisso” (2001), de Sabotage, e a frase do comerciante passa a fazer todo sentido.

DJ Junior Black no Rei dos Doces
1h40 Rio Branco
Começa a ecoar um “Fora Temer” mais forte, provocado por Tatá Aeroplano, o músico paulista que está à frente da homenagem ao gaúcho Júpiter Maçã no palco roqueiro da Virada. O grito já havia sido ouvido no mesmo show com reações espontâneas da plateia ou poucas manifestações dos artistas que subiram ao palco, como a fluminense Bárbara Eugenia. Ela grita: “Fora Temer e Júpiter Maçã para sempre!”. Tatá parece querer mais reações do público, dos artistas, do Brasil. A reação não dura muito tempo. O jeito é tocar “Miss Lexotan 6 mg Garota” (1996), um clássico de Flávio Basso, fundador das bandas TNT e Cascavelletes e influenciador de várias gerações de roqueiros. Júpiter Maçã, como Basso era conhecido, morreu em dezembro do ano passado, aos 47 anos.

1h55 São João

Desde o início da Virada, já são 800 sanduíches vendidos n’A Verdadeira Casa da Mortadela. Silveira, batizado como Antonio Cavalcanti Vieira, morador do Grajaú, na periferia sul da capital, é quem está cuidando da lanchonete para Irineu Stalbo, um italiano de 86 anos que criou um dos clássicos de São Paulo em 1977. O lugar é discreto, corre-se o risco de passar desapercebido diante dele. Lá se mantém a tradição da Itália de tocar o sino sempre que alguém dá uma gorjeta. Até o fim da Virada, a meta é bater os 1.500 sanduíches, o triplo do que se vende em dias normais. Um casal que visivelmente não frequenta o centro, tampouco a cozinha, se espanta quando um dos atendentes usa uma pedra de amolar facas. Eles comem, pagam, e a campainha não toca.

2h42 avenida São João

Com 42 minutos de atraso, a cantora e compositora paulistana Céu sobe ao palco quando a plateia já revela irritação por esperar tanto tempo. Ouve-se na fila do gargarejo gritos de “ridícula” e “tá se achando, é?”. Mas ela logo começa a cativar o público indócil, já desde a primeira música, “Rapsódia Brasilis” (2016).

No mesmo palco 100% ocupado por mulheres em que Valesca brilhou horas atrás, a paulistana Céu grita um “viva Elza Soares!” toda vestida de vermelho. E não se furta a falar da política, mais exatamente às 3 horas e 4 minutos da madrugada de domingo: “Devolveram o ministério, falta devolver o governo. Fora Temer”. E não dedica a próxima música, “Amor Pixelado” (2016), ao paulista de Tietê Michel Temer: “Saiba, meu amor, cuidarei de nós/ mesmo quando eu for em busca de mim/ em busca do que faz você me amar”.

3h10 Arouche

“Eu não confio em você, sua bicha invejosa!”, repete em pique de rock’n’roll a banda Verónica Decide Morrer, uma atualização cearense dos históricos e andróginos New York Dolls. Vestido(a) de vermelho, o(a) vocalista dedica a apresentação “a todas as verónicas que são espancadas, humilhadas, rejeitadas, como eu e você”.

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3h19 Itapetininga

A vida cotidiana penetra a Virada, e vice-versa. Conforme a programação oficial se desacelera na alta madrugada, os notívagos que querem mais diversão se entrosam com a vida diária no centro da cidade velha. O bar Terraço da Barão vive momentos de glória, ao som de um forró moderno na voz de Wesley Safadão, que sai de potentes caixas acústicas e se alastra para os pés dos casais (de todos os sexos) que dançam entre as mesas postas no calçadão. Do lado de dentro do balcão, o trabalhador do bar se faz mídia e registra o momento em vídeo pelo celular, com um sorriso largo no rosto.

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3h30 Anhangabaú

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Um palco foi montado embaixo do viaduto do Chá para dar lugar ao teatro de musicais estilo Broadway abrasileirada, com versões “pocket” de espetáculos sobre Gilberto GilElis ReginaChorão e outros. A alta madrugada é reservada ao vaudeville andrógino dos Dzi Croquettes, grupo histórico dos anos 1970 homenageado pelo musical de mesmo nome. O grupo de homens musculosos e depilados seminus contrasta com a magreza peluda tipo Ney Matogrosso dos Croquettes originais, assim como a locução contrasta sem querer o momento atual de ruptura democrática com o idílio romantizado em torno do grupo setentista que desafiava normas de comportamento (“era tempo de ditadura”, “eles mandaram a ditadura para a puta que pariu”).

Interpretada originalmente por Elis Regina, a canção “Dois pra Lá, Dois pra Cá” (1974), de João Bosco Aldir Blanc, soa estranhamente comportada apesar do vestidão do performer. O discurso investe no discurso antipolítico tipo “fora todos”, demonizador da política, mas suficiente para fazer erguer na plateia um galho da árvore “fora Temer” que veio do cortejo do Tarado ni Você. Um dos atores ousa uma breve extrapolação do protesto genérico e indistinto, quando sugere a Marco Feliciano, Michel Temer e Eduardo Cunha que “vão dar meia hora de cu”. A plateia se divide entre os que aplaudem, os que tateiam mais um “fora Temer” e os que, cansados de guerra, dormem nas cadeiras de plástico do teatro ao ar livre.

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3h45 Cidade Tiradentes

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Na Cidade Tiradentes, extremidade leste da capital, o rapper paulistano da sul  b Brown termina o show e seus seguranças fazem um corredor polonês para ele voltar ao camarim. Brown fura o bloqueio dos seguranças e vai de encontro à grade onde os fãs berram feito loucos. Deixa-se abraçar por eles, ser agarrado, faz selfies, sorri com dentes que parecem ter sido recentemente embranquecidos com laser. Mano Brown está em casa. Sua mulher e empresária, a atenta Eliane Dias, vai pinçando meninos e meninas da plateia e elevando até o palco para dançar com o rapper.

Apesar da alegria, de um show abertamente de entretenimento, enxertado com disco music e soul romântica, ele mostra como sempre que não veio ao mundo a passeio: “Todo mundo brabo. No trânsito, todo mundo general. Não tem humildade, falta sensibilidade. Tanta brabeza não impediu que a gente tomasse um golpe (…). Nossa mente fechou, se alienou. Acredito na nossa juventude, na sua capacidade. Mas por enquanto vocês vão conviver com um governo de ladrões. Tomamos um golpe, e seu voto não valeu nada”. Parecia até que já tinha ouvido os grampos do ministro interino Romero Jucá que seriam divulgados na segunda-feira pós-Virada.

4h12 Paissandu

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Um dos oásis na madrugada agressiva é o chão do largo do Paissandu, terra simbólica da cultura afrodescendente paulistana, devotado nestas 24 horas às chamadas culturas tradicionais, populares, negras. Uma plateia de paulistanos e não paulistanos, de forasteiros e descendentes de outros paulistas e brasileiros, parece confirmar que, dificuldades à parte, a Virada é para virar, amanhecer e continuar. “Abre a roda, por favor”, pede a solista ao público ávido que parecer querer ser a própria roda viva.

 

4h45 Rio Branco

No trajeto dos cortejos, é a vez da “Parada Carnavalizada”, que aglutina os clubbers da festa Mel, o músico eletrônico paraense Jaloo e as comissões de frente da Mocidade Alegre e da Acadêmicos do Tucuruvi. Em macacão sintético moderno, Jaloo evolui dentro da corda que envolve o trio elétrico, ao lado das comissões de frente fantasiadas. Do lado de cá da corda, bem colados aos passistas fantasiados, dois homens assistem abraçados ao semicarnaval quase animado. Um deles, de jaqueta do Black Sabbath, conduz com carinho o outro, que é cego, no compasso do som gravado das percussões de escola de samba.

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4h59 ipiranga com são joão
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O folião dark confabula com dois amigos na esquina “onde cruza a Ipiranga e a avenida São João”, fantasiado como desses personagens de filme hollywoodiano de terror. É a morte? “É uma morte meio gay”, desvenda um dos colegas.

5h08 São João
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Misto de rapper e funkeira vinda da zona leste paulistana, a “rainha do dancehall brasileiro” Lei Di Dai se apresenta em nome das minorias, para uma plateia reduzidíssima em que se destacam as travestis, as transexuais, as “verónicas espancadas, humilhadas, rejeitadas”.

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Simultânea ao show de Lei Di Dai, a manutenção passa pesada, empurrando com um jato d’água montanhas de lixo do asfalto da São João e das ruas perpendiculares para as sarjetas. O sinal está vermelho e quem chegar para o turno de diversão da manhã não perceberá nem um centésimo das toneladas de lixo que a alegria da festa já produziu.

 

 

5h46 Arouche

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Vestido de militar tipo Sgt. Pepper (mas em tons de azul), o baiano Luiz Caldas explica para o público iconoclasta do Arouche que perdeu os preconceitos que tinha entre os 7 e os 16 anos de idade, período de iniciação profissional, quando tocava todos os estilos musicais e esmerilhava a técnica guitarreira. Sua apresentação reflete a mistura, com versões em inglês embromation para “Three Little Birds” (1977), do jamaicano Bob Marley, e “Sultans of Swing” (1978), dos britânicos Dire Straits, mais “Frevo Mulher” (1979), do paraibano Zé Ramalho, citação saudosa ao mestre pernambucano Luiz Gonzaga e muita axé music baiana. A plateia é reduzida, animada e não dá brecha para o “fora Temer”. Às 6h15, ao som de “sene sené sené, sené Senegal”, já é quase manhã, a Virada começa a desescurecer: virou!

 

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7h10 República

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O rapper vindo da zona norte paulistana Rashid dá boa noite e imediatamente se corrige: está acostumado aos shows noturnos, o correto é dizer bom dia. Pergunta quem aqui sonha com uma média no café da manhã, canta o demitido que não tem coragem de contar à família da demissão, elogia Cristo. “Não descendo de escravos/ descendo de reis que foram escravizados”, proclama, do topo da manhã em que já brilha o sol que Alcione chamou na noite baixa do sábado chuvoso. O “Temer jamais” resiste nos sulfites pregados em diversos pontos do palco.

 

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7h45 Paissandu

As culturas tradicionais amanhecem firmes e fortes ao lado da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos do Rosário, em frente à Galeria do Rock. É a vez da Companhia de Moçambique Unidos de São Benedito, de Taubaté, interior paulista, formada por homens e mulheres, jovens e velhos, todo(a)s preto(a)s.

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9h29 São João

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Acompanhada por plateia reduzidíssima e calorosíssima e pelo mestre conterrâneo de guitarradas Manoel Cordeiro, a paraense Fafá de Belém explode a manhã azul ao som de música chamada “brega”, o “É o Amor” (1991) dos goianos Zezé di Camargo & Luciano e a “Nuvem de Lágrimas” (1990) dos paranaenses Chitãozinho & Xororó. O tempo passa, o tempo voa, e só desse modo transversal, colateral e intimidado a música sertaneja (tipicamente paulista apesar dos preconceitos paulistanos) consegue adentrar a Virada Cultural, de resto refratária à caipirez e aos nossos próprios sertões.

 

10h05 República

Com repertório ainda curto, mas estrutura já ultraprofissional (e dançarinos exímios), o incandescente MC Bin Laden eletriza a plateia da manhã na praça da República, ao som, principalmente, de “Tá Tranquilo, Tá Favorável”. O segurança que protege o palco e o artista de seus próprios fãs tapa os ouvidos, em desgosto aparente. Quando Bin Laden interpreta o clássico “Rap das Armas”, o segurança olha para ele de soslaio, aparentando desgosto ainda maior.

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Como aconteceu na apresentação de Rashid, Jesus Cristo toma a frente de Michel Temer na ligeireza do discurso do dono do microfone. Dilma Rousseff, que não é Michel nem Jesus (nem homem), permanece esquecida e escanteada, seja pelo artista, seja pela plateia. Tá tranquilo, tá favorável.

 

 

10h30 Ibirapuera

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Estamos longe do centro, mas também das periferias, no parque Ibirapuera, na parte mais rica da zona sul paulistana. Um menino que detesta Mozart acha uma violência levá-lo a um lugar no qual o som da Orquestra da Baviera espalha “As Bodas de Fígaro” por todo canto. É uma apresentação nos fundos do Auditório Ibirapuera, que engaja os pais e libera os moleques. Mas há as compensações: oficinas para fazer aeromodelos, até com o motorzinho para fazê-lo funcionar; escorregadores infláveis de 4 metros de altura; esculturas com bexigas; oficinas de tatuagens temporárias e aulas para as crianças brincarem com tintas naturais; ioiôs e bambolês abandonados no gramado.

Para comer, nada das guloseimas tradicionais entupidas de açúcar. Há uma preocupação com as comidas. O takoyaki (bolinho de polvo grelhado) tem uma filinha enfrentável; o café com calma na bike food demora, mas compensa. Quem levou cachorro, mesmo os mansinhos, levou com uma focinheira – afinal, tem horas que é o menino que morde o cachorro.

13h25 Anhangabaú
“A TV é uma fábrica de produzir doidos, como disse Stanislaw Ponte Preta”, declama a atriz Cláudia Raia, no teatro improvisado debaixo do viaduto do Chá. A esta altura do espetáculo Raia 30 – O Musical, dirigido por José Possi Neto, a atriz global, que também é bailarina, cantora e pioneira na produção de musicais no Brasil, faz uma retrospectiva de sua carreira. O cenário perde a força diante de um palco aberto e fortemente iluminado pela luz do dia. Mas a troca de figurinos ocorre de forma tão perfeita que o público se impressiona, num ritmo de três mudanças de roupas a cada cinco minutos.

13h51 Anhangabaú

Monica Estela no espetáculo Everybody
Na chamada Ocupação Anhangabaú, o Snuff Puppets, grupo teatral australiano que veio pela primeira vez ao país, encerra sua apresentação de Everybody, e as pessoas se aproximam do elenco. A professora do ensino básico Maria Rodrigues de Carvalho Perroti, de 62 anos, é uma delas. A caminho de ir para casa, depois de assistir ao show da paraibana Elba Ramalho, ela decidiu parar para ver a performance. Não satisfeita, encontra a atriz Mônica Estela e faz uma pergunta sobre um bebê que fuma e o conceito geral do espetáculo.

Atenciosamente, a atriz de 29 anos explica que o bebê vira um adulto, de terno e gravata, fuma cigarros, anda com pressa, cria brigas. E que a peça fala do nascimento até a morte e os processos internos e externos pelos quais passam as pessoas. Mônica traduziu as falas na véspera da apresentação, que faz parte do Festival Australia Now, de ampla repercussão em outros países. É a primeira Virada dela, que por pouco não pegou uma de suas criações artísticas e saiu pelas ruas do centro para apresentar aos paulistanos seu personagem Janus, ou Januário. É um boneco feito de termoplástico, um material novo, que permite que seja confeccionado com grande riqueza de detalhes. Aprendeu a técnica com a cultuada figurinista, bonequeira e artista plástica russa Natacha Belova. Janus tem 1,77 de altura, exatamente como a atriz.

14h29 Praça Dom José Gaspar
Vinte saraus se revezam em um único palco da Virada. No ano passado, eram dois palcos. “Cortaram o orçamento”, explica Carlos Moura, editor do jornal Centro em Foco, uma publicação gratuita com tiragem de mais de 20 mil exemplares. Toda sexta-feira do mês, ele e um grupo de amigos e interessados, como advogados, escritores, publicitários e músicos, se reúnem no segundo andar do restaurante Cama e Café, na rua Roberto Simonsen, no centro.

15h25 Júlio Prestes

O rapper Criolo, do Grajaú, periferia sul da capital, veste duas camisetas em um dos shows mais concorridos da Virada. A primeira delas tem a inscrição “Democracia 1982” (em alusão ao Corinthians) e a outra, “Ainda Há Tempo”, nome de seu primeiro álbum, de 2006, recém-relançado. Ele não cita políticos, mas o produtor musical paulistano Daniel Ganjaman bolou uma forma de chamar a atenção do público para o momento atual. Quando viu, Criolo apoiou na hora a iniciativa. No imenso telão atrás do palco, são projetados os dizeres “Temer Jamais” em diversas cores, durante poucos segundos. A plateia vai ao delírio e começa a gritar “Fora Temer”.

Na área VIP, o ex-senador Eduardo Suplicy e ex-secretário municipal de Direitos Humanos entra na onda. De espírito jovem, está vestido com uma camiseta vermelha da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco, que ganhou do jornalista Miguel Icassati no meio da Virada. Veste ainda uma bermuda, que parece emprestada dos filhos. Também nesse local está o pernambucano Nelson Triunfo, considerado um dos pais do rap nacional e reverenciado por MC Dan Dan, de Diadema, na Grande São Paulo, que é companheiro de palco de Criolo e mais aguerrido para provocar o público a se manifestar.

Criolo e MC Dan Dan
Num show que ganha os ares de um culto pós-moderno, Criolo prefere provocar a consciência dos espectadores sobre temas como amor, violência, cidadania e justiça social. Quando um grupo de cinco estudantes invade a área VIP com uma faixa de protesto e é controlado de forma enérgica pelos seguranças, o rapper pede para não usarem de violência e provoca: “Nas quebrada que a gente veio, só de tá vivo já é um protesto, tá ligado?”.

15h15 Arouche
A área de imprensa do show da banda oitentista Metrô é praticamente uma embaixada informal da França. A paulistana Virginie, a vocalista, festeja o show que a precedeu, do forrozeiro paraibano Genival Lacerda. “Ter entrado depois de Genival foi a cerreja do bolo”, ela diz, com um sotaque francês que não havia em 1988. Sua voz continua pequena e linda, mas ela já não alcança certas notas. “Preciso de ajuda, gente!”, conclama, ao cantar “Olhar” (1985).

O Metrô nos deu muitas coisas além da batida new wave com defeito de fabricação: nos deu o La Tartine e o jeito blasé do 16º arrondissement. Virginie Adèle Lydie Boutaud-Manent foi uma das musas seminais dos anos 1980. Ex-top model, conheceu os colegas de música no Lycée Pasteur, onde estudavam francês. Em uma época estridente, em que todos buscavam ocupar lugares de líderes geracionais, ela cantava com a delicadeza de uma Nara Leão e tinha um ar nonchalance aristocrático.

Nesse retorno, após 30 anos sem se apresentarem ao vivo para plateia tão expressiva, eles estão à vontade. Não têm mais a obrigação de fazer história. Misturam a seus hits imemoriais coisas como a folclórica “Frères Jacques”; “I Feel Love” (1977), da norte-americana Donna Summer; e “Me Dê Motivo” (1983), do carioca Tim Maia, sem nem ficarem vermelhos. Sândalo de Dândi.

15h35 Praça Julio Mesquita

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O cabelo é tão branco que já ficou com aquele tom amarelado dos castigos do sol e da rua. O velho olha a rua através da grade, com o olhar voltado para dentro de si mesmo. Ele é um dos 210 abrigados provisórios do Centro Especial de Acolhida de Idosos, um prédio histórico a igual distância dos palcos Arouche e Palco São João. A qualquer momento terá que deixar sua casa provisória. Anda arrastando uma perna e não quer conversa. “Não gosto de música. Não me lembro do que eu gostava antes de não gostar. Não vi nada dessa festa. Por que você não me deixa descansar?”.

17h Parelheiros
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O paulistano da zona norte Emicida encomendou um pastel de cima do palco. Brinca que o pastel não chegou. Os jovens fumam narguilé em rodas. As barraquinhas da praça em frente ao Palco Parelheiros, na periferia sul da capital, vendem bolo de cenoura, yakissoba, espetinho de churrasco, vinho quente. E dão um clima de quermesse ao show do rapper, que estende uma camiseta na caixa de retorno à sua frente: “Temer Jamais”.

O público se esgoela quando ele canta “Hoje Cedo” (2013), seu dueto com a baiana Pitty. Mas aí ele contrabandeia versos (“alegria era o que faltava em mim/ uma esperança vaga/ que eu já encontrei”) e fica melhor ainda. Tem menino de 11 anos berrando versos do carioca Cartola e se você já viu cena mais bonita conte pra gente.

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A Virada, que amanheceu há mais de 12 horas, anoitece em Parelheiros. De todos os rolês pela periferia, Parelheiros é o mais alegre e colorido – mais alto astral, inclusive, que grande parte dos shows da Virada no centro. Cidade Tiradentes é cinza e sombria. M’Boi Mirim é recatada e sincera (“Hey, DJ, vai tomar no cu!”, berrava o público por conta da insistência do programador em tocar sempre a mesma música).

18h18 Júlio Prestes

Cabe ao Nação Zumbi, grupo pernambucano herdeiro do manguebit, o show de encerramento do palco principal da Virada Cultural. Também cabe a eles um dos posicionamentos mais críticos sobre a situação política que o Brasil atravessa. “Do cinismo ao sinistro, estamos passando por uma fase de sinistro. E isso depende de nós. Não nos calemos. Quando se cala, o cidadão é apagado. Mas nós não estamos apagados, estamos acesos. Fora Temer. Temer Jamais”, diz Jorge du Peixe, logo seguido pela plateia aos gritos de “Fora Temer”.

O show é marcado pela sucessão de hits dos discos da banda. O vocalista, que substituiu o fundador Chico Science, morto em 1997, lembra dos 20 anos do álbum Afrociberdelia (1996), e não é preciso muito para mostrar a atualidade das composições. Apesar de tudo que aconteceu de lá para cá e da recolocação do país perante o mundo, o Brasil da Virada Cultural 2016 ameaça voltar a ser a reprodução de “Manguetown”, de exatos 20 anos atrás: “Estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm casas e eu não tenho asas/ mas estou aqui em minha casa/ onde os urubus têm asas/ vou pintando, segurando as paredes no mangue do meu quintal.” O show se encerra às 19h27. O recado foi dado, no palco e, principalmente, nas plateias.

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